LIDO COM INTERESSE – 51
Angelina e Raul Brandão, quadro de Columbano
Título: SE TIVESSE DE RECOMEÇAR A VIDA
Autor: Raul Brandão
Editora: Contexto Editora, Lisboa
Edição: 1995
Poesia em prosa ou apenas prosa poética, eis uma arte de que já não me lembrava e de que este autor – em que só agora me estreei – dá magníficos exemplos neste livrinho em formato de bolso e apenas com 70 páginas.
Dá gosto transcrever o que nos diz sobre a mulher:
Qual é a força extraordinária que possuis? – pergunto muitas vezes a mim mesmo. Dois ou três princípios cristãos inabaláveis – e por trás milhares de seres que desapareceram ignorados, cumprindo a vida ignorada. Nem sequer se debateram. Entregaram-se. Confiaram. A mulher portuguesa comunica ao lar a ternura com que os pássaros aquecem o ninho. Sua vida dá luz para alumiar os outros. Foi assim, com tão pequenos meios, que me ensinaste. Com uma palavra e mais nada, com um simples olhar, com silêncio e mais nada. Uma atitude fazia-me pensar. E mal sabes tu que quando os teus dedos ágeis trabalhavam a meu lado, teciam ao mesmo tempo o pano grosso de casa e a nossa vida espiritual.
E, como tu, milhares de seres têm cumprido a vida em silêncio, aceitando-a sem exageros. Nas mãos das mulheres, até as coisas vulgares que se fazem na aldeia – cozer o pão, lançar a teia – assumem um carácter sagrado. Elas passam desconhecidas e dispõem dum poder extraordinário. Mantêm a vida ordenada com um sorriso tímido. A mulher está mais perto que nós da Natureza e de Deus.
Cada vez me aproximo mais de ti. O que há de puro em mim a ti o devo. És limpidez e ternura.
Eu exagero sempre a dor, tu nunca te queixas. Andas nas pontas dos pés. Mal respiras e estás sempre presente. Tens uma capacidade para a dor que eu não possuo.
Tudo em ti se faz naturalmente, tão naturalmente que ninguém dá por isso. A tua bondade não é um esforço. E é-te tão fácil partilhar a desgraça e as penas dos que se aproximam de ti… Ninguém te vê e fazes-te sentir em toda a casa. Aquece-la. Estás em toda a parte, e ao mesmo tempo, a meu lado. És como o ar que respiro.
Qual é a fonte escondida da tua vida, só o sei agora. Nunca pensas em ti – pensas sempre nos outros, ocupada num dever a cumprir, não como dever mas como instintiva compreensão da Vida.
Outro exemplo que me parece digno de realce tem a ver com a homenagem que Raul Brandão presta ao boi doméstico, esse que era o grande companheiro do homem na faina da terra:
É com bosta que se estruma o campo, que se barra o forno e o pipo da água-pé, é com bosta que se acrescenta a eira para secar o pão. Por isso o boi faz parte da família: vale mais que o homem e é melhor tratado que a mulher. Tem a cama quente e limpa e comida escolhida e farta. O boi e o milhão, o estrume e o pão são divindades para o lavrador. O vinho é acessório. Chove na casa, a corte é abrigada. Sem boi não se faz o carreto, sem boi não se pode lavrar o campo nem fabricar o esterco. Este bicho paciente e dócil, quase majestoso, com a venta molhada pela baba, olha para a gente com doçura. Anos depois de vendidos, quando passam pela estrada, voltam o focinho para o sítio e mugem com saudades da casa, dos campos e talvez do homem.
(…)
Tudo aqui está ligado pelas mesmas raízes, o alpendre remendado com velhas tábuas, o casebre de lascas grosseiras, a eira de lajedo, a terra, o homem e os bois, e tudo tem o carácter das coisas e dos seres essenciais e remotos e foi cimentado pelos anos. Dura há séculos – e nunca mais acaba.
Mas, por muito que possa custar ao autor lá no além, acabou.
E a este propósito, ignorava por completo o pensamento exotérico de Raul Brandão que ao longo de todo este livrinho vai evocando os mortos que o rodeiam sentados à lareira nas noites invernosas. E também me espantaram algumas frases revolucionárias ao melhor estilo de 1975, tantos anos depois da morte do autor: ele, senhorio, proclamava que a terra deveria pertencer a quem a trabalha; ele, senhorio engravatado, cobrava rendas aos caseiros esfarrapados mas ambicionava pela chegada do dia em que cessasse a exploração do homem pelo homem…
Duas frases, para concluir:
Sejamos humildes porque a gente chega ao fim da vida sem ter entendido nada deste mundo, quanto mais do outro.
(…)
O futuro é Jesus no alto da montanha.
Lisboa, Setembro de 2010
Henrique Salles da Fonseca