CURTINHAS Nº 81
O PÃO E A INFORMAÇÃO
Os incêndios na Rússia, a seca na Ucrânia, as cheias no Punjab, tudo regiões de grande importância na produção cerealífera – como não acreditar em que o trigo vai faltar e o seu preço disparar por aí acima?
Isto mesmo não se cansam de anunciar, em coro, os nossos moageiros e os nossos industriais de panificação, sempre à la page com o que se passa lá fora: Preparai-vos, ó gentes, que o preço do pão vai subir não tarda! É inevitável! Como ir contra a corrente do mercado?
Os que não podem deixar de comprar pão, porque têm nele a base do seu sustento, barafustam mansamente: Especulação é o que é! Malditos especuladores internacionais, que não descansam enquanto não lavram maior miséria.
E toda a gente - dos que são pagos para vigiar pelas regras da concorrência, aos que se reclamam “fazedores de opinião” - abana a cabeça, conformada, enquanto trinca delicadamente umas batatinhas fritas e uns amendoins: O que fazer? É o mercado, a especulação sem freio, essa alma danada que grassa pela estranja.
Mas ninguém investiga, ninguém quer saber o que de facto se passa, ninguém se pergunta por onde pára a realidade - que isso é uma trabalheira das antigas.
Ora a realidade diz-nos que o trigo para entrega no final do ano (sim, sim, Leitor, os mercados agrícolas, precisamente aqueles por onde parece grassar a mais infame especulação, organizaram-se de forma a reduzir o risco do produtor, coisa completamente desconhecida por cá) está a ser cotado à volta de USD 7.45/bu (bu=bushel; 1 bushel, ou alqueire, corresponde a um pouco mais de 35 l).
Uma subida de quase 50% desde o princípio do ano a dar razão aos nossos moageiros. Ou não será assim?
As estimativas (USDA/NASS) sobre a produção este ano (645.7 Milhões Ton) e a procura até à próxima campanha (664.9 Milhões Ton) apontam para um deficit de cerca de 19.2 Milhões Ton. Mas nem produção é sinónimo de oferta, nem deficit é sinónimo de escassez.
Some-se à produção prevista os stocks actualmente em silo (174.5 Milhões Ton, das quais só 25.9 Milhões Ton, o triplo do normal, nos EUA) e o quadro começa a ficar menos sombrio.
É óbvio que os nossos moageiros não entraram ainda com os stocks nas suas contas (vá-se lá saber o que é que vai fazer com eles quem os tem, terão pensado).
E fica também evidente que a memória não é o forte deles. Pois se fosse, recordar-se-iam ainda dos preços que o trigo atingiu em 2007 e 2009: oscilou entre USD 6/bu e USD 11/bu, muito acima dos valores para que apontam hoje as perspectivas mais pessimistas.
Compreendo que lhes tenha escapado a questão do frete. Compram CIF (isto é, compram quase à porta de casa) e os fretes já lhes chegam incluídos no preço de factura.
Mas se conhecessem o que se passa com os fretes marítimos (o trigo é, em grande parte, transportado por mar) saberiam que a referência na Europa é o Baltic Dry Índex (que abrange também as cargas via Mar Negro). E mais saberiam que este índice tem andado pelas ruas da amargura desde finais de 2008 até Julho de 2010, embora subisse, por estes dias, cerca de 45% (a partir de uma base anormalmente baixa, recordo).
Ora, se não cuidam de conferir o que lhes é facturado, não são os seus clientes directos (os industriais de panificação), muito menos os seus clientes finais (todos nós que apreciamos bom pão), que têm de pagar as suas distracções.
Concluindo: no pé em que as coisas agora estão, tanto o trigo como o seu transporte, apesar de todos os aumentos que têm sido anunciados recentemente, estão mais baratos no mercado internacional hoje do que estiveram nos dois últimos anos. Entenda-se “para entregas até ao final do ano” - porque o preço para as entregas que estão, neste momento, a decorrer foi fixado meses atrás, em época de “vacas magras”.
Azar dos azares, para os nossos moageiros. Então não é que o actual preço do pão vem já de há anos, quando o preço do trigo e os fretes marítimos eram muito superiores ao que hoje se perspectiva? E que a quebra prolongada nos preços internacionais do trigo e dos fretes marítimos, que entretanto se verificou, nunca chegou à boca dos portugueses?
De facto, o que é feio, e motivo de censura severa, não é a especulação - mas a manipulação do mercado.
E a manipulação mais ingénua é, precisamente, esta que puxa os preços internos rapidamente para cima quando os preços internacionais sobem – e esquece de os baixar (ou vai baixando muito, muito suavemente, para evitar trambolhões, que alguém ainda se pode magoar) quando os preços internacionais caem a pique.
Especulação é assumir riscos que, de outra maneira, os produtores agrícolas teriam de suportar sozinhos. E é justamente por não haver mercados organizados, onde a especulação possa actuar, que os nossos agricultores têm de suportar sozinhos o risco de mercado - e a nossa agricultura está como está.
Coisa bem diferente é a manipulação, por exemplo, proceder a ajustamentos de preços sempre de forma acentuadamente assimétrica, e sempre em prejuízo do consumidor.
Mas, em matéria de manipulação do mercado, apenas tentada ou à descarada, os nossos moageiros estão em boa companhia.
AGOSTO 2010