PORTUGAL CONFIANTE
Era preciso dizer ao Governo que a coisa não está a resultar. Era bom alguém informar o Parlamento que já ninguém acredita. Era conveniente avisar as autoridades que estão a destruir-se a si próprias. Não vale a pena repetir cerimoniais pomposos de dignidade, fundamento e justificação se a credibilidade se esfumou. Não serve de nada compor retóricas elegantes e juras indignadas, porque ninguém as leva a sério. É inútil representar uma comédia que perdeu a graça. Podem convencer-se a si mesmos e aplaudir correligionários, mas o público já nem sequer se indigna. Limita-se a bocejar.
A patética desorientação dos oito meses do Governo Sócrates é excruciantemente evidente. Às garantias que tudo vai bem seguem-se jactos de medidas drásticas, que asseguram que tudo vai ficar bem, e todos tomam como provisórias. Perante a gravidade da crise a improvisação diz-se estratégica. Já nem se dão ao trabalho de fingir planeamento coerente e lógica de suporte. O País dói-se da desorientação.
Será isto assim tão grave? Afinal, sem tirar nada ao grotesco, a circunstância é típica de fim de ciclo. Não é a apoteose da corrupção, nem sequer o estertor da democracia. Por caricata e degradante que seja, tudo se esvairá com nova orientação. À penosa inanidade da sociedade americana no segundo mandato de Bush seguiu-se sem interrupção a euforia extática da eleição de Obama. Mesmo com crise financeira, todos esqueceram o que tanto os afligia semanas antes.
Alguns políticos têm a lucidez de evitar a dolorosa agonia. Cavaco Silva não se recandidatou em 1995 porque: "Tenho de ter a sabedoria de retirar-me antes que os Portugueses se cansem excessivamente de mim" (Autobiografia Política II, Círculo de Leitores, 2004, p. 485). António Guterres demitiu-se em 2001 para "evitar que o País caia num pântano político".
Infelizmente existem também aqueles que insistem em continuar um mandato zombie, confundindo teimosia com persistência. Chega-se com demasiada frequência à situação-limite do clássico ataque parlamentar de Leo Amery a Neville Chamberlin a 7 de Maio de 1940, citando uma referência com três séculos: "Isto foi o que Cromwell disse ao Long Parliament quando pensava que esse já não era capaz de conduzir os assuntos da nação: "Esteve demasiado tempo aqui para qualquer bem que possa ter feito. Parta, e livre-nos de si. Em nome de Deus, vá-se embora!"" O Governo caiu.
Entretanto, as consequências do impasse são graves. No meio da crise do euro, em que Portugal ocupa um papel delicado, a vacuidade do nosso Executivo tem de ser muito prejudicial. Mesmo assim, a coisa está longe de ser dramática, pois os aspectos mais ridículos não ressoam fora do nosso burgo e os mercados atendem mais a indicadores que a tolices. É pior que um Governo acossado seja um bónus para os grupos instalados, que negoceiam benesses em troca de balões de oxigénio. Mas o verdadeiro perigo está noutro lado.
Como nos alcoólicos anónimos, é a nossa antiga experiência democrática que pode tornar maligna a infecção. Portugal viveu décadas de vida política decadente, no liberalismo e Primeira República. Os governos sucediam-se, todos piores que a própria caricatura. O povo arrastava o descrédito de uma elite que actuava para si mesma, sem soluções, estratégia ou até vergonha. Os arroubos de novidade, como o que estabeleceu o regime de que celebramos o centenário, rapidamente se esvaíam num marasmo pior. As esperanças, sempre iludidas, traziam mais amargura que alívio.
Esses tempos podem parecer-se com os últimos meses, mas não podemos esquecer que a revolução de Abril quebrou o velho enguiço. Pela primeira vez na nossa história temos uma democracia a funcionar. A delirante persistência de Sócrates não chega para destruir este sucesso estrutural. Além disso, temos hoje uma sociedade aberta, ao contrário de há cem anos, e pacificada, ao contrário da Grécia. Para vencer esta fase difícil sem cicatrizes duradouras só nos falta uma coisa: confiança social no regime que nos tem servido bem há 36 anos.
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN - 28 de Junho de 2010