PORTO LIVRE
“Como uma pedra caída na superfície lisa das águas,
origina círculos cada vez mais afastados do centro,
diluindo-se, também, assim, o catolicismo português;
verificando ainda que, neste caso, os círculos tanto
podem ser centrífugos como centrípetos"
D. Manuel Clemente, Bispo do Porto,
in DIÁLOGO EM TEMPO DE ESCOMBROS,
pág. 68, Editora Pedra da Lua, 1ª edição
A caneta cria sulcos de Palavras no papel, tal como o arado projecta regos paralelos na terra que se abre.
A caneta é puxada pela mão, tal como o arado era puxado, no princípio dos tempos, pelas parelhas de animais, substituídas, mais tarde, pelas máquinas.
Os sulcos na terra são os recipientes que acolhem as sementes para gerar frutos; sendo estes elaborados em vários géneros e categorias; suporte da nossa vida física, após transformações destinadas a cumprir objectivos específicos, nas áreas da alimentação, calçado, vestuário e medicamentos naturais ou químicos, estes últimos em segundas, terceiras ou mais múltiplas transformações.
As Palavras, estruturadas em sulcos a que chamamos linhas, no papel, têm a função de suporte da nossa vida emocional. Coligidas e guardadas, residem em edifícios que conhecemos por Livros. Armazenadas, também, em lugares a que designamos arquivos, são as guardiãs do nosso Conhecimento Individual e Colectivo. São as fiéis depositárias da nossa Memória Individual e Colectiva. São as detentoras e os espelhos da nossa História Comum ou Pessoal. São a Quadratura geográfica e planetária dos elementos da Natureza que nos rodeiam.
Sem Palavras não há Registo da Memória, não há Passado, não existe Futuro, não frutifica o Fundamento da Vida, não colhe a Existência, não cresce a Essência.
Sem a Palavra, escrita ou falada, não há Vida antes ou depois da Morte. Existe Nada.
A Palavra é o nosso Porto Seguro.
Sem a Palavra não há Porto Livre onde nos recolhamos. Não há Liberdade. Não há Escolha...
A Palavra é a Dinâmica e o seu Contrário.
Escreva-se:
Com Gestos estudados
Na Síntese dos Dias.
Com Palavras mecânicas
Na Sequência Imóvel dos Gestos.
Aparentemente civilizados.
Virtualmente cultos.
Caminhamos nus!
E não o sabemos.
Caminhamos descalços!
E não sentimos a aspereza
Das pedras.
Sintra, 31 de Julho de 2010
Luís Santiago