Afinal de quem é a culpa?
A propósito da crise financeira que se abateu sobre a Irlanda, o Financial Times atribui a um político irlandês a afirmação de que " Quem precisa ser reformado is not you but the EU". Ou seja, nada errado na atitude e cultura nacional; o erro está na instituição supranacional.
Ao ler tal notícia lembrei-me do que ocorreu na Dinamarca nos alvores do século XIX. A vida corria mal a Frederico VI, ao tempo rei absoluto dos Dinamarqueses. Receoso de Napoleão, aderiu ao Bloqueio Continental por este decretado e, em consequência, viu a sua capital bombardeada duas vezes pela esquadra de Nelson e, por fim, assistiu impotente, à apreensão pelos britânicos do que restava da sua frota naval (acto descrito como "confisco" na comunicação feita ao Parlamento britânico). Pelos Tratados de Paz com a Suécia e com a Alemanha, confirmados posteriormente pelo Congresso de Viena que pôs termo à aventura napoleónica, Frederico perdeu a Noruega que até aí pertencera ao seu reino e ainda um condado na Pomerânia trocado por um ducado (que um seu descendente viria a perder para Bismark). O domínio real dinamarquês, até aí considerável, ficou praticamente reduzido às duas ilhas do Báltico e à estreita península da Jutlândia, territórios sem outros recursos além dos florestais.
Frederico VI da Dinamarca, nascido em 1768 em Copenhague e falecido em 1839 na mesma localidade, foi rei da Dinamarca a partir de 1808 até à sua morte mas apenas até 1814 da Noruega
Se Frederico fosse irlandês teria dito que a culpa de tanto prejuízo cabia ao sistema internacional. Mas Frederico era de outra cultura. Lia Shakespeare e acreditava como Cláudio que "a culpa da nossa desgraça não está nos astros mas em nós mesmos". Enunciou então o seu famoso preceito: -"Somos fracos e pobres mas nada nos obriga a ser também estúpidos". E, com esta justificação, introduziu a escolaridade obrigatória. Isto passou-se em 1815. O rei não atribuiu a terceiros, nem a fatalidades geográficas ou de qualquer outra natureza, as culpas pela trágica condição a que ficara condenada a sua nação. Admitiu que o mal estava na incultura nacional e dispôs-se a fazer aquilo que os autocratas mais receiam: - educar o povo.
A atitude do rei galvanizou os espíritos. Ao longo do século XIX, os dinamarqueses, na sua totalidade, dedicaram-se a aprender e, no final do século, passaram a ensinar. Artistas, cientistas e letrados produziram aquilo que se chamou a Idade de Ouro da Dinamarca. Hans Christian Anderson tornou-se um dos escritores mais lidos em todo o mundo; Kierkegaard reviu a problemática do ser e do crer e lançou as bases do existencialismo cristão e, já no início do século XX, Niels Bohr formulou uma nova teoria sobre a constituição do átomo que representou um passo decisivo no conhecimento humano (e na história da humanidade). Enquanto isso, os artista plásticos criaram um estilo inconfundível e impuseram a simplicidade como requisito da elegância a uma Europa até aí intoxicada pela requintadamente elaborada e francesíssima "Arte Nova".
Ao longo de século e meio, a Dinamarca passou, sem sobressaltos, do absolutismo para o parlamentarismo. Desde 1920 que a Casa Real se mantém totalmente alheada da política. No processo, o país ganhou a amizade da Inglaterra, o que lhe permitiu quebrar o isolamento. A hostilidade alemã persistiu até ao final da II Guerra Mundial mas viria a resolver-se no seio da União Europeia.
No domínio da economia o êxito dificilmente poderia ser ultrapassado. Já antes da descoberta do petróleo no Mar do Norte, usufruía o povo dinamarquês de alto nível de vida e dispunha de um sistema escolar e um serviço de saúde que faziam inveja a qualquer outra nação. Hoje, a Dinamarca detém o mais alto rendimento per capita de todos os estados membros da União Europeia e também o mais elevado índice de homogeneidade na distribuição desse rendimento.
Perante isto digam-me: - de quem é a culpa das desgraças e atrasos nacionais?
Frederiksdale, 22 de Julho de 2010
Luís Soares de Oliveira