Uma contribuinte para a galeria queirosiana
O problema da Educação é um dos que aflige as consciências daqueles que, desejando para este país uma vida cultural que definitivamente nos arrancasse dos rótulos de caricatura que Eça colou aos habitantes deste país, através dos seus tipos sociais, que, com variantes, se fixaram no “lugar comum” dos Gouvarinhos ou dos Conselheiros Acácios, fanfarrões e sebosos – intelectualmente falando – pelo seu discurso rigidamente convencional segundo os dogmas de uma preparação cultural fechada à inovação, o “resto da paisagem” social embrutecido quer na pelintrice da secretaria, quer na sordidez pacóvia do seu analfabetismo unicamente vergado sobre a rabiça do arado.
Critica-se bastante Salazar, ao reduzir as suas propostas de ensino obrigatório a um primarismo que deixou muito do nosso povo na tacanhez da sua ignorância, pois que o trabalho sempre mal retribuído, não permitia uma continuidade escolar que o livrasse da teia de obscuridade em que sempre vegetou, os filhos e as filhas necessários à lavoura ou a outros trabalhos das artes paternas, pese embora o apodo de “exploração do trabalho infantil” com que as sensibilidades do nosso tempo o alcunharam. Mas Salazar não construiu só escolas primárias, e o ensino que se fazia nos liceus, nas escolas técnicas, nas universidades, era rigoroso e exigente, impondo estudo, testado em exames, na escola primária, no ensino secundário, no ensino superior.
O 25 de Abril trouxe reformas, reformas no ensino de que a mais brutal foi a da permissividade descontrolada, geradora de uma indisciplina criminosa e cada vez mais destituída de um horizonte cultural sério, a que instrumentos facilitadores do ensino cada vez mais favoreciam a indolência e a prevaricação.
As reformas foram-se fazendo e, como coroa de glória para o governo de Sócrates, além dos magalhães do seu despudor e desonestidade, uma ministra impôs alterações no processo de avaliação de professores e alunos, a pretexto de um rigor que não existia dantes, segundo se disse, que mergulhou o ensino cada vez mais no vazio e no caótico de exigências acéfalas que retiraram a uns e a outros tempo para a autenticidade do estudo, quer para ensinar, quer para aprender.
A ministra saiu, outra entrou, as alterações no “ensino” continuam a fazer-se, agora fala-se em “agrupamentos” de escolas, outra aberração com que o mesmo Sócrates continua a arrumar maquiavelicamente a sua casa de brinquedo, e a burlar quem o permite, que somos todos nós que não nos opomos à sua brincadeira.
Mas o assunto é dramático, já várias vezes tenho erguido a voz, neste mero espaço de blog, para gritar um desacordo que ninguém ouve nem lê, passivos que somos à brutalidade de quem o comanda.
Chegou-me por email o texto que segue, sobre uma ex-ministra que lançou o livro da sua glória. É de Santana Castilho, certo e profundo para quem o quiser gravar. Eu permito-me gravá-lo no meu blog, contente por reconhecer a coragem e o talento de uma pessoa que merece ser atendida. O país merece ser atendido. Não é só desmascarar. É preciso coragem para o libertar.
07-07-2010
A solidez de um livro, segundo Sobrinho Simões
No livro que acaba de lançar, Maria de Lurdes Rodrigues cita Max Weber para justificar a sua acção política, movida, diz ela, pela “ética das convicções”. Atentem, generosas leitoras e leitores, ao naco de prosa que a ex-ministra escolhe para caracterizar quem tem vocação para a política (no caso, ela própria):
“… Só quem está certo de não desanimar quando… o mundo se mostra demasiado estúpido ou demasiado abjecto para o que … tem a oferecer … tem vocação para a política …” (in A Escola Pública Pode Fazer A Diferença, p.18)
Freud ensinou-nos que nenhuma palavra ou pensamento acontecem por acidente. Uma coisa são os erros comuns, outra, os actos falhados. É falhado o acto que leva Maria de Lurdes Rodrigues a citar, assim, Weber, para justificar a sua acção política. E fez tudo o que fez, confessou-nos no circo do lançamento, com grande alegria, qual pirómana que se baba de prazer ante as cinzas da escola pública que deixou.
Eis as entranhas de uma coisa que não é pessoa, que não tem alma, e que não aguenta mais que 18 páginas para dizer, de modo obsceno, o que pensa dos que esmagou com sofrimento.
O livro é híbrido e frio, como a autora. É um relatório factual e burocrático sobre as suas tenebrosas medidas de política educativa. A excepção a este registo está na introdução, um arremedo ensaísta de alguém que chegou a ministra sem nunca ter percebido o que é uma escola e para que serve um sistema de ensino. Permitam-me duas notas factuais a este propósito e a mero título ilustrativo:
1. A autora introduz, como grande tema de debate sobre políticas educativas, o nível de conhecimentos adquiridos na escola. Interroga-nos assim: “… Os adultos que fizeram a quarta classe da instrução primária no tempo dos nossos avós sabiam mais do que os jovens que hoje concluem o 9.º ano? …” (obra citada, p.11). A questão é intelectualmente pouco honesta. Porque compara quatro anos de escolaridade com nove. Porque é formulada por alguém que contribuiu definitivamente para que não se possam hoje comparar resultados escolares, coisa que, apesar das dificuldades, se podia fazer na época a que alude.
2. A ex-ministra diz que não fez uma reforma da educação, que tão-só concebeu e aplicou medidas. Se é surpreendente o conceito (“reforma” foi palavra-chave citada até à exaustão na vigência do Governo que integrou), entra em delírio surrealista quando escreve (p.15): “… Não se pode considerar que o conjunto das medidas configurem uma reforma da educação, porque de facto não foi introduzida uma mudança nos princípios de funcionamento do sistema educativo, ou uma mudança na sua estrutura e organização …”. Não mudou princípios de funcionamento do sistema educativo, nem mudou a sua estrutura e organização? E os estúpidos somos nós? Enxergue-se e tenha decoro.
Segue-se o Diário da República narrado aos papalvos por 20 euros e 19 cêntimos. Registam-se apoios, listam-se colaboradoras e colaboradores e referem-se reuniões. Nenhuma dúvida, nenhum apreço pelo contraditório que lhe foi oposto, muito menos qualquer riqueza dialéctica. Um deserto, numa imensa auto-estrada de propaganda.
Ao longo dos últimos cinco anos, fundamentei nesta coluna de opinião a oposição a cada uma das 24 medidas que o livro distingue, pelo que tão-só recordo as mais emblemáticas das que a autora refere: a aberração pedagógica e social, que nacionalizou crianças e legitimou a escravização dos pais, baptizada como “escola a tempo inteiro”; o logro do ensino profissional (Maria de Lurdes fala de 28.000 alunos em 2005, para dizer que os quadruplicou em 2009. Mas conta mal.
No ano lectivo de 2004-05 tinha 92.102 alunos no conjunto dos cursos que ofereciam formação profissional); a demagogia de prolongar para 12 anos o ensino obrigatório (na Europa a 27 só cinco países foram por aí) sub-repticiamente sustentada pela grosseira manipulação estatística que lhe permite afirmar que no ensino secundário temos um professor para cada 8,4 alunos (p.90), pasmem quantos conhecem a realidade; a insistência no criminoso abandono de milhares de crianças com necessidades educativas especiais, por via da decantada aplicação da Classificação Internacional de Funcionalidade; a engenharia financeira e administrativa (depois veremos aonde nos conduzirá), que está a transferir para a propriedade de uma empresa privada, por enquanto detida pelo Estado, todo o património edificado; e, “the last, but not the least”, a fraude pedagógica imensa que dá pelo nome de Novas Oportunidades, forma de diplomar a ignorância na hora, gerando injustiça e semeando ilusões.
Na cerimónia do lançamento do livro que acabo, sumariamente, de analisar, Sobrinho Simões, um cientista de grande gabarito e um homem de muitos méritos, referiu-o como “o mais sólido” que leu até hoje. Quem dedicou a vida a combater o cancro com o rigor da ciência não podia, estou seguro, afirmar o que afirmou, se tivesse analisado a produção técnica e legislativa que sustenta a racionalidade do livro que elogiou. Mas a vida actual é assim. Muitos sucumbem, adaptando-se a esta sociedade doente. Continuo felizmente de saúde. Por isso choro quando vejo cair os melhores.
Santana Castilho
Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)
Eis o texto de Santana Castilho, uma página forte que merece ser meditada e atendida. Mas Lurdes Rodrigues socorre-se, ao que parece, de Weber, como apoio da sua acção e importância política. Leio na Internet que “Weber definiu o Estado como "uma entidade que reivindica o monopólio do uso legítimo da força física", uma definição que se tornou central no estudo da moderna ciência política no Ocidente.
Não se estranhem, assim, as depressões e doenças fortes de que muitos professores – que eram excelentes professores – passaram a sofrer com a brutalidade de uma reforma que tem por objectivo não a formação de cidadãos futuros, mas a extorsão de cidadãos presentes. Por conta da crise será.
Berta Brás