A GAROTA QUE CAIU DOS CÉUS - 3
“Ninguém pode afirmar que tem coragem,
se não enfrentou o perigo”.
François de La Rochefoucauld
1613-1680
Independente do aspecto político que representava para os povos que queriam a sua independência a chegada de uma nova força de repressão, o espectáculo anunciado seria interessante, sobretudo se pensarmos que foi em África, há mais de quarenta anos, onde praticamente não havia pára-quedismo. Ninguém queria perder a oportunidade de ver descer dos céus aqueles pequenos cogumelos, devagar, que aumentavam de volume até se desfazerem de encontro ao chão.
Sabendo que esse festival aéreo daria início à instalação de mais uma força, certamente para não só intimidar, mas combater pretensões de independência, um dos partidos, todos ainda muito incipientes, dando os primeiros passos, distribuiu clandestinamente um panfleto-manifesto alertando as populações para o significado desse tal festival, aconselhando-as a não comparecerem. Distribuído com a maior dificuldade, porque clandestino, alcançou pouca gente, e muita desta assim mesmo ainda quis ir ver o que seria essa nova ameaça.
Os jactos da Força Aérea evoluíram por cima da cidade, voos de espectáculo, e os de transporte de tropas soltaram umas dezenas de homens pelos ares. A surpresa maior estava reservada para o final, e essa nada tinha a ver com a guerra que acabaria por eclodir: o primeiro salto de pára-quedas de uma mulher! Um acontecimento na história da evolução dos povos, quando por esse tempo a mulher pouco mais fazia do que parir e cuidar de filhos e marido!
O tempo estava meio fechado no fim daquela manhã, quando o grande feito ia acontecer, por cima do Aeroporto.
Todos os muene-mputu presentes, desde o nguvulu aos secretários, os cabitangu, respectivas esposas e povo em geral.
Tinha vinte e quatro anos a mocinha que se ia atrever a tamanha temeridade. Os machos pára-quedistas e outros elementos da Força Aérea, terrivelmente preocupados com o que poderia acontecer à frágil e feminina atrevida.
Avião escolhido para a aventura: um velho Dragon Rapid, que atingia a vertiginosa velocidade de cruzeiro de 213 km/hora, bimotor, asa dupla, estrutura tubular, forrado a lona, para transporte de passageiros em linhas “regulares”. Passageiros, não recordo bem, mas o máximo de sete! Grande avião.
Piloto, um amigo, experiente comandante da Divisão de Transportes Aéreos de Angola, a DTA, do mesmo modo igualmente preocupado com a responsabilidade de “largar a primeira moça nos ares de Angola”, o Jorge Verde.
Chegada a hora, entram no avião, o piloto, fundamental, a destemida aventureira, um fotógrafo para documentar o histórico salto, e este, que hoje, tantos anos passados, “faz a reportagem”, amigo de infância da heroína, privilegiado assim para de mais perto e melhor ver o famoso salto!
Em terra, silêncio! Tensão. Céu meio encoberto de nuvens. O Dragon ganhou altura, e ficou voando em círculos bem por cima do Aeroporto, onde o salto se devia efectuar. O piloto, nervoso também por causa do natural machismo e porque não conseguia ver o chão com clareza, ordenava que a mocinha só devia saltar quando ele mandasse. Lá de cima, a pista, pequenina, aparecia e sumia logo encoberta com as nuvens. Já íamos talvez na quarta volta, o tempo seguia, que é o único que não se preocupa com tristezas ou alegrias, Sol ou chuva. Pára-quedista junto à porta, fotógrafo à ilharga, eu no centro daquele aviãozão. O Jorge Verde:
- Não saltes ainda. Espera que eu te diga.
Ordem que eu retransmitia. Porta do avião aberta, o fotógrafo amarrado a um banco com medo de ser levado porta fora mesmo sem pára-quedas, eu atrevidamente mal assomava com a cabeça a um metro da porta, e a valente moça, tranquila, mas desesperada para saltar logo.
-Espera mais um pouco.
A dada altura sai e fica em pé na asa! Imaginem só a loucura! O fotógrafo e eu arrepiados, talvez mesmo apavorados e com mais vertigens do que jamais havíamos pensado. E o piloto:
- Ainda não estamos na posição certa. Espera.
Neste momento a frágil e feminina aventureira, diz:
- Não vou esperar mais. De repente, lá vai ela. Saltou!
Nós, dentro do avião deixámos de a ver no mesmo instante, e ninguém se atrevia a pôr a cabeça de fora para ver aonde ela ia! Deus nos livre.
Tínhamos ambos a sensação de que se puséssemos a cabeça de fora, no mesmo segundo saíamos dali mesmo sem pára-quedas. Passado um pouco ouve-se novamente o piloto:
- Espera só mais um pouco. Vamos agora passar bem em cima.
- Não te preocupes mais. Já voou!
- Mas ela é maluca! Não devia ter saído sem eu lhe dizer!
- Pois é. Mas agora já lá deve estar em baixo!
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A única solução foi regressar à base. Nada mais havia a fazer lá nas alturas. Quando aterrámos, já ela estava, pés bem no chão, rodeada de gente. O povo espectador aplaudia, os machos da aviação ralhavam com a menina:
- Foi uma temeridade... que loucura... tanto tempo em queda livre... que perigo... não foi para isso que você aqui veio... podia ter acontecido um desastre e nós éramos os responsáveis, e outras observações dentro da mesma tónica.
Os homens ainda não estavam habituados a que as mulheres rivalizassem com eles em situações de coragem! Ninguém se lembrava por exemplo de uma Brites de Almeida, a terrível padeira de Aljubarrota, ou de uma Joana d’Arc!
Cumprimentos, despedidas, muitos obrigados, etc., acabou a festa, e a mocinha, nossa hóspede, foi connosco para casa. Ligámos logo a telefonia para ouvir a reportagem, em diferido, como hoje se diz, porque ainda não havia o em directo, ou ao vivo, e enquanto almoçávamos fomos ouvindo o locutor e o seu relato.
- Estamos no aeroporto, presentes as diversas Excelências, etc. e vamos agora assistir ao primeiro salto de pára-quedas de uma mulher, nestas terras de Angola. Jovem, enfermeira pára-quedista, veio de Lisboa expressamente para nos mostrar o quanto as mulheres podem fazer, saltando dos ares, quando necessário, para levar a saúde e a esperança a feridos e doentes, em lugares onde outro tipo de ajuda pode fazer perigar a vida do doente. O exemplo desta jovem deve ser admirado e seguido.
O avião, com a destemida rapariga, já levantou aqui do aeroporto, e está a ganhar altura. O tempo está bastante encoberto o que não permite que daqui de baixo o possamos acompanhar o tempo todo. Ouvimos o ronco do seu motor, mas mal o adivinhamos quando de repente passa entre duas nuvens... Olha, passou agora. Ihh! Já deixámos novamente de o ver... O avião anda lá por cima às voltas. Vamos ver quando nos aparece a pára-quedista. OLHEM! Apareceu agora. Lá vem ela. Mas... o pára-quedas não se abriu!... Meu Deus! O pára-quedas nunca mais se abre. Que horror... ela vai cair. Já vem a cair há uns cinco minutos e o pára-quedas não se abre!...
Nesta altura a voz do locutor está ofegante, cansada! Ele já antevê uma tragédia! A emoção mais forte do que ele.
- F I N A L M E N T E ! Graças a Deus! O pára-quedas abriu-se... lá vem ela... descendo... devagarinho. Lá vem... Está agora... a pousar... no chão... para lá... já se encaminham... os que a vão receber... e felicitar. Uff! Que grande susto nós levámos!
Um pouco mais tarde, almoçando tranquilamente, a então jovem e hoje vovó Isabel Bandeira de Melo – Rilvas – reviveu esta “apavorante” descrição da sua aventura... “ao vivo”!
Estávamos em 1960!
Rio de Janeiro 27 de Outubro de 2009
Francisco Gomes de Amorim