A GAROTA QUE CAIU DOS CÉUS
PARTE 1
“Ninguém pode afirmar que tem coragem,
se não enfrentou o perigo”.
François de La Rochefoucauld.
1613-1680
Corriam tranquilos os primeiros meses dos anos sessenta, em Luanda.
Os céus, por incrível que pareça, estavam ainda longe de ameaçar a tempestade que pouco depois começou a desabar em cima de Angola, primeiro com a guerra colonial, e depois muito mais violenta e devastadora com a guerra interna, que se pode chamar de muitas maneiras, nenhuma delas correspondendo à verdade absoluta: civil, tribal, político-partidária (dificilmente esta versão), leste-oeste ou comunismo versus capitalismo, simples (simples?) ambição individual, etc.
Em Angola a vida corria, pode dizer-se tranquila. Não para todos, infelizmente, como em toda a parte do mundo, que parece ser eternamente só para alguns.
Entretanto, jovens angolanos, a maioria deles que tinha ido para Portugal estudar nas universidades, começavam a redespertar para o que estava acontecendo mundo afora, relativamente à subjugação dos povos através do colonialismo.
Decidiram, de entrada somente uns poucos, criar um Movimento que mostrasse ao mundo as injustiças praticadas nas colónias portuguesas, bem como a injustiça intrínseca do próprio sentido colonial, procurando apoio internacional para uma acção mais vasta e completa, que se preciso fosse levasse à luta armada, uma vez que sabiam que o governo português não ia largar da mão, de graça, os territórios que considerava seus e, no total, eram vinte e tantas vezes maiores do que a própria Metrópole. Alguns deles ricos, muitos ricos, Angola sobretudo.
Não eram só os de pele café que queriam livrar-se da tal Metrópole. Não. Eram todos os que ali viviam e passaram a considerar Angola como a sua terra.
O governo central e suas sofisticadas técnicas de espionagem próprias, herdadas da secular experiência da Inquisição e seu mestre grande, um dos maiores e mais completos biltres e criminosos de toda a história da humanidade, que se alinha com Stalin, Mao Tsé Tung e Hitler, chamado Torquemada, sabia de tudo quanto se passava em Portugal, colónias e mesmo no estrangeiro.
Fazia prisões de cafés, leites e quaisquer outros matizes que não se mostrassem da cor do governo. Os que conseguiam escapar imigravam para a Europa central, para o Leste europeu e para alguns países já independentes em África, os únicos que obviamente os apoiavam, como os Congos, Ghana e Guiné-Conackry, e até Argélia, esta batendo-se ainda pela sua própria independência.
Em silêncio, Portugal ia-se preparando para defender militarmente os seus territórios, o que se pode ver pelos orçamentos das províncias, que votaram, já em 1959, para as forças armadas, o dobro das verbas destinadas à educação, cuja falta foi talvez o maior crime cometido por Portugal nas suas colónias, crime com atenuantes atendendo à sua tradição de país com o maior índice de analfabetização na Europa!
Os órgãos de informação rigorosamente controlados, proibidos de falar em quaisquer movimentos ou ideias independentistas ou separatistas, os investimentos a crescer na indústria, leis coloniais travestidas em ultramarinas para fingir que estava tudo bem, afirmando-se que um minhoto era igual a um boximane ou um macúa ou um timorense, enfim, o interior de Angola estabilizado com as populações rurais fixadas, utilizando-se de uma rede de estabelecimentos comerciais que alcançavam até ao mais recôndito das terras do fim do mundo, onde se adquiriam os excedentes de produção, encaminhados depois para as principais cidades.
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Viajar por esse interior, ao encontro de uma natureza ainda muito virgem, era algo que até hoje a memória guarda como um privilégio. As estradas eram poucas e na altura das chuvas dividiam-se em pouco mais do que duas categorias: passa ou não passa! Quando não passa, passava-se por vezes um, dois e mais dias à espera que a situação se revertesse, ali, no mato, socorrendo-se o viajante do préstimo do chamado nativo, sempre pronto a ajudar. Nesses momentos, difíceis, incómodos, porque o carro era o hotel, a melhor solução era tirar partido da parte positiva que a espera e os obstáculos impunham, e mesmo não falando a língua local, apreciar um pouco aquelas rodas de conversa à noite, à volta de uma fogueira, pedindo ajuda a algum intérprete que nos pusesse ao corrente do que se ia contando.
(continua)
Rio de Janeiro 27 de Outubro de 2009
Francisco Gomes de Amorim