BURRICADAS nº 73
«Maître corbeau sur un arbre perché...»
...E CHEGÁMOS AO FUNDO (X)
Mesmo antes de dar a conhecer o destino que tem reservado para o BPP (ou para o Grupo Privado Holding, visto que ninguém parece interessado em destrinçar um do outro), quem pode mandou que se fizesse um Fundo de Investimentos para sossegar os Clientes das “Estratégias de Retorno Absoluto (ERA)” – elevadas estas, sem explicação nem justificação, à suprema categoria de “origem de todos os males” (afinal, o BdP é que sabia - apesar de durante anos e anos ter ficado a olhar lá do alto, como o corvo da fábula).
Eis, pois, o Fundo. Mas um Fundo feito à medida de quê, é o que resta averiguar - isto se os Clientes, na sua maioria, estiverem pelos ajustes (e parece que estão). O documento que apresenta o Fundo e descreve toda a operação (o Prospecto), esse sim, é que é interessante, tanto pelo que revela como pelo que esconde.
Fica-se a saber que as SI dispõem todas da mesma Caixa Postal nas Ilhas Virgens Britânicas - mas a sua existência legal continua envolta em mistério (nem sede social, nem capital social, nem número de registo, nada!), embora se dê a entender, aqui e ali, que girariam em torno do BPP-Cayman.
A omissão é tanto mais intrigante quando, para a Sociedade que servirá de pivot à operação, esses elementos essenciais aparecem todos bem escarrapachados. E é mais preocupante ainda porque a legalidade (ou ilegalidade [leia-se, burla]) das ERA não pode ser dissociada do facto de as SI estarem, ou não, regularmente constituídas (à luz do regime jurídico dos Estados, ou Territórios, onde tenham sede e onde operem).
Fica-se a saber que as SI eram administradas por uma sociedade com sede na Suíça (provavelmente, no Offshore suíço) – mas nada se diz sobre quem são os seus sócios e quem integra os seus Órgãos Sociais (quanto mais não seja, hoje), pelo que a regularidade (ou irregularidade) das Demonstrações Financeiras (DF) Consolidadas do Grupo permanece uma questão em aberto.
E nada se fica a saber sobre as DF das SI (com especial menção para os respectivos movimentos de Tesouraria), todos estes anos – mas é possível deduzir, através de umas quantas frases cuidadosamente redigidas, que, feitas as contas a 31DEZ2009 (todos os dados seguintes se reportam a esta data), foi detectado um “buraco” de € 210.2 Milhões.
Fica-se a saber que as SI tinham em carteira títulos e outros direitos avaliados em € 772.5 Milhões (incluindo € 2.7 Milhões de juros a receber e mais uns escassos € 138 mil sobre o BPP-Cayman) – ainda que os critérios de valorização que o Avaliador (Deloitte) adoptou para os títulos que não são negociados em Bolsa (a grande maioria) possam ser discutidos.
Fica-se a saber que as SI mantinham em depósito junto do BPP-Cayman € 98.7 Milhões, a que foram acrescentados, entretanto, € 210.2 Milhões em “resultado de correcções e regularizações” (em palavras simples: valores que deveriam estar lá, mas que não foram encontrados; o tal “buraco”) – e o que custa a crer é que saldos de tal magnitude tenham passado despercebidos ao BdP e ao Auditor Externo (Deloitte), desde sempre.
E custa a crer, também, que, com o nihil obstat de quem pode e manda, os valores em falta só serão efectivamente pagos aos Clientes se, entretanto, houver dinheiro (tout court) – sem que se diga de onde poderá vir esse dinheiro.
Fica-se a saber que as SI, no seu conjunto, deviam € 228.3 Milhões – e fica-se com a ideia de que os credores únicos seriam o BPP e o BPP-Cayman (pois, neste ponto, a redacção do Prospecto não foge à regra: é especialmente cautelosa);
Apetece perguntar porque é que estes créditos do BPP e do BPP-Cayman sobre as SI não foram cativados para futuro encontro de contas com as garantias que lhes sejam exigíveis. Resposta: Foram dados em penhor mercantil ao Estado, como contra-garantia do aval ao empréstimo de € 450 Milhões.
Fica-se a saber que o BPP era, na sombra, a Entidade de Custódia das loan notes (actividade nada usual em Bancos) – mas quanto ao total investido nas ERA e o total dos créditos que os Clientes podem reclamar no vencimento das suas aplicações (total esse que traduz a responsabilidade do BPP e BPP-Cayman por garantias prestadas) – nem sinal.
Fica-se a saber que Governo e Supervisores fazem tábua rasa dos Term & Conditions (T&C) que a Administração do BPP, quando instada, ia entregando aos poucos – mas a certeza com que põem e dispõem dos patrimónios das SI só reforça a convicção de que tudo se passou “em família” (o que é dizer que, excepção feita aos instrumentos de dívida - que não foram encontrados nenhuns emitidos pelo Grupo na posse das SI, tudo o mais girava em circuito fechado, entre BPP, BPP-Cayman e SI).
E à vista de tanta relação cruzada no interior do Grupo, não se percebe como é que nada disto despertou, não direi as suspeitas, mas, vá lá, a curiosidade burocrática dos preclaros Supervisores (BdP e CMVM, por igual) - ou saltou à vista do Auditor Externo (Deloitte).
Fica-se a saber que os € 98.7 Milhões que as SI têm depositados junto do BPP-Cayman serão convertidos em depósitos à ordem dos Clientes junto do BPP (para os Clientes residentes) e do BPP-Cayman (para os Clientes não residentes), e considerados como amortização parcial das loan notes – mas nada se diz sobre se o BPP e o BPP-Cayman dispõem, neste momento, de liquidez que lhes permita restituir esses depósitos, nem se indica em que data a partir da qual esse dinheiro estará disponível.
Dito por palavras simples: quem manda e pode quer obter quitação de uma dívida contra a entrega de um cheque que nem sabe, nem quer saber, se tem cobertura. Assim, dá gosto.
Fica-se a saber que, se esses depósitos não forem honrados (porque o Banco depositário, entretanto, foi declarado insolvente), o FGD responderá por não mais de € 100,000 relativamente a cada titular de loan note (e alguns são não residentes, logo excluídos da cobertura do FGD, mas com direito à parte proporcional desses depósitos) – o que é uma informação algo excessiva, já que dividindo os € 98.7 Milhões (os únicos cobertos pelo FGD) pelos cerca de 1,200 Clientes dá € 82,250/Cliente (aproximadamente).
E é surpreendente que, tratando-se duma operação dirigida a um conjunto bem identificado de pessoas, o seu número, repartido por residentes e não residentes, com a indicação dos créditos que podem reclamar, não conste do Prospecto.
Fica-se a saber, como escrevi mais acima, que aqueles € 210.2 Milhões (o “buraco”) que, por um artifício contabilístico, vão aparecer creditados à ordem dos Clientes, são, também eles, considerados como amortização parcial das loan notes - mas não contam com a cobertura do FGD.
O que também não deve ser um prejuízo por aí além, dado que o FGD só pode ser accionado se o BPP for declarado insolvente (e os Clientes, para aderirem ao Fundo, têm de subscrever primeiro um Acordo de Reestruturação das suas aplicações, o qual só faz sentido se a finalidade for recuperar estes Bancos).
Fica-se a saber que a Administração do BPP fez valer a tese de que os créditos que este Banco, e o BPP-Cayman, detêm sobre as SI devem ser integralmente pagos com o produto da venda (ou com o reembolso) dos valores que os garantem, pois será assim que conta (conta, note-se bem, sem compromisso formal e firme) poder restituir um dia os fundos agora depositados em nome dos Clientes. E não dá para acreditar no que se lê.
Quer dizer, houve liquidez da boa que as SI depositaram nos Bancos em crise (€ 98.7 Milhões) e que estes desbaratam; houve dinheiro bom que os Clientes entregaram e que o Auditor Externo dá como sem paradeiro conhecido (€ 210.2 Milhões); há as garantias prestadas a favor dos Clientes e que estão “in-the-money”; e a Administração do BPP, com o beneplácito de Governo e Supervisores, quer utilizar parte do património das SI para liquidar dívidas que não são das SI – são dos Bancos. Isto é possível no Direito português?
Fica-se a saber que, relativamente às garantias de capital e juros prestadas pelo BPP (e pelo BPP-Cayman), as menos valias que o Fundo apure ao fim dos primeiros 4 anos (o prazo de vida que lhe é fixado, mas que pode ser prorrogado até 10 anos), serão cobertas pelo Sistema de Indemnização aos Investidores (SII) até à concorrência de € 25,000 por titular de loan notes - ficando o restante como créditos comuns a reclamar ou do BPP e do BPP-Cayman, ou das respectivas massas insolventes.
Fica-se a saber que o valor das garantias prestadas pelo BPP (e pelo BPP-Cayman), reportado a 31DEZ2009, seria um tal (que não é divulgado), montante que os Bancos fiadores pagarão como e quando puderem – ou terão de ser reclamados como créditos comuns das respectivas massas insolventes.
Fica-se a saber que o Governo se dispõe a dar o aval do Estado para cobertura de perdas com origem nas ERA, mas só até à concorrência de € 250,000 por titular de loan notes que adira ao Fundo – mas não é claro se esta garantia é para adicionar às restantes acima referidas (FGD e SII), ou se completa o que lhes faltar para atingir este limite.
Até que este aval do Estado nem é uma mercê por aí além, já que o empréstimo de € 450 Milhões garantido pelo Estado (que privilegiou uns credores comuns, preterindo outros) vai certamente ser pago por inteiro com a entrega das parcelas do património do BPP que contra-garantia ao Estado – libertando assim a referida garantia. E essas parcelas, cativadas pelo penhor mercantil que o Governo acautelou (e os Supervisores aquiesceram), deixaram há muito de aproveitar aos credores comuns que, na altura, foram preteridos.
Dir-se-ia que este aval do Estado reporia a igualdade entre credores comuns. Assim seria, se abrangesse todos aqueles que presentemente se encontram nessa situação. Mas não. Para se obter o tratamento equitativo a que tem direito, o Cliente terá que aderir ao Fundo. Não soa bem, pois não?
Fica-se a saber que o Regulamento do Fundo prevê políticas de investimentos, com a Entidade Gestora a comprar e a vender valores – mas não se diz porquê e para quê, dado que o Fundo tem por finalidade única a liquidação do seu património e o reembolso (a ver por quanto) dos Clientes que a ele adiram. Neste ponto, é de prever o pior.
Fica-se a saber que quem pode e manda (apesar de ter à mão uma plêiade de consultores jurídicos e a Procuradoria Geral da República) se interroga sobre se a subscrição dos Acordos de Reestruturação (das aplicações feitas) não implicará uma automática novação, extinguindo todos os anteriores créditos que poderiam ser reclamados do BPP (e do BPP-Cayman), fazendo surgir em seu lugar uns novos (sobre o Fundo, sobre o FGD, sobre o SII e sobre o Estado) – o que, a acontecer, constituiria, de imediato, um enriquecimento sem causa para o BPP (e o BPP-Cayman), à custa dos Clientes e dos contribuintes. Será esta a estratégia congeminada para salvar o BPP & Cia?
Fica-se a saber que uma trafulhice magicada de modo canhestro por ignorantes cheios de prosápia, e que fez o seu caminho graças à complacência (para não dizer pior...) de Reguladores e Supervisores, vai conhecer agora um epílogo “à portuguesa”: meio trapalhão, meio desenrasca, sem o mínimo respeito pela Razão e pelos Direitos em presença.
E eu ainda estou para saber porque é que toda esta história me trouxe à memória As Farpas: “E o povo paga e reza. Paga aos que o exploram e reza aos que o enganam”.
(FIM)