BURNOUT, DOENÇA DE MÉDICO
Foto: de Carlos Amaro
Fonte: Doutora (revista Médica de informação científico-cultural - Ano V, n.º 5, pg 47)
Sobreviver é meta genética de todo o ser. E a cada época da finita existência as dificuldades mudam, com as novas exigências do ambiente. Se no inicio de tudo a falta de alimento foi o maior obstáculo à perpetuação do Homo Sapiens na terra, hoje, na era digital, o desafio é superar a ignorância e a sombra, projecção fosca e apagada da humana presença.
O homem da actualidade não quer só um abrigo e comida, motivado pela sociedade mediática e consumista, quer também conforto, bens e reconhecimento. Na busca pela “luminescência”, aqueles que não foram premiados pela natureza com dons especiais (aptidões inatas para alguma actividade) ou com a artística criatividade (capacidade individual de, através da emoção, manipular e exteriorizar imagens, sons, escritas, toda a sorte de arte e ciência, adquiridas com aprendizado e vivência), têm que “ralar” pelo sucesso nos seus empreendimentos.
Dentre as profissões que mais exigem do indivíduo, a medicina desponta de maneira mais proeminente. No mundo globalizado, ser um bom médico é mais que trabalhar as 8 horas diárias (no Brasil), é estar disponível 24 horas do dia, quando solicitado. É ter a agenda sempre cheia, fazer várias actividades ao mesmo tempo, ser social e profissionalmente reconhecido e respeitado pelos seus pares e pacientes. Conseguir isto sem ónus pessoal, é missão quase impossível.
Foi H.J. Freudenberger, psicanalista americano que em 1974 teve sua vida conturbada por dificuldades e frustrações que o levaram a um distúrbio físico e mental ao qual ele chamou de “Burnout”, palavra inglesa para dizer de algo ou de alguém que se apagou por falta de energia. Fósforo que se queimou, individuo que se gastou pelas exigências da profissão e da vida.
Não é incomum nas grandes comunidades o médico entre 10 a 15 anos de formado, no auge da maturidade, depois de uma semana desgastante de atendimentos no consultório e em hospitais, e de plantões, inclusive nos finais de semana e feriados, esgotado física e emocionalmente, ter a sensação de que consumiu a vida e a mocidade no trabalho. Vivendo em prolongado e permanente stress, em ambientes insalubres e não raras as vezes deprimentes, sem descanso suficiente, ao final de certo tempo, sente-se exaurido física e psicologicamente. É a síndrome de Burnout que chegou e ele não percebeu.
Tudo começa com uma sensação de mal-estar, o profissional sente dores nos ombros, como carregasse um enorme peso sobre eles, tem uma cefaleia tensional persistente. Durante os atendimentos, sobrevém uma ansiedade permanente, uma urgência em solucionar tudo e rapidamente. Aparecem crises de sudorese profusa, palpitações, dores pré-cordiais, diarreias e problemas digestivos sem motivo aparente. O indivíduo torna-se insone, inapetente. Sempre tenso, cria rugas de expressão, embranquecem os cabelos, envelhece precocemente. No exercício da actividade profissional passa a ter dificuldade em se concentrar, em raciocinar com clareza, em tomar decisões e atitudes com presteza. No afã de tudo resolver, passa a esquecer dados, tem movimentos irrelevantes, comete erros. Cai a performance profissional que depois de algum tempo repercute na sua vida social.
Com o vício adquirido na formação médica em que aprende a servir e não a ser servido, ignora que está doente, que precisa ser atendido. Reputa o que se passa ao cansaço. Quando faz exames e não há alterações laboratoriais, diz que é só estafa, que basta algumas horas de sono e tudo está resolvido. Mas quando volta ao trabalho, sente tudo novamente. Vêm as ideias drásticas. Pensa em trocar de profissão, mudar de vida. Pensa em viver mais calmamente, dormir as 8 horas por dia (necessárias e receitadas aos pacientes), tirar férias todos os anos, sair com a família nos finais de semana, ter horários fixos para as refeições, dar uma cochilada após o almoço (sem interrupção de chamadas telefónicas). Pensa em ter tempo para um hobby que o relaxe e recarregue as energias vitais. Quem sabe não possa exercer alguma actividade que permita expandir o seu potencial polivalente, que lhe traga mais tranquilidade existencial e que lhe dê o retorno financeiro de que precisa para sustentar a família? Mas logo “cai na real”. Como é que na altura da vida em que se encontra, com tantos compromissos familiares e sociais, vai largar o que faz e começar algo para o qual não foi preparado? É pular no escuro. É arriscar a ter outros e até piores problemas.
Na grande maioria das vezes o profissional persiste no seu ofício. Porém, quando continua com a mesma rotina, torna-se impaciente, irritadiço, pessimista, depressivo. Passa a se achar injustiçado pela vida, pela sociedade, por ele mesmo, pode até apresentar sinais psíquicos de paranóia. Apresenta dificuldades nos relacionamentos, evita reuniões sociais, busca o isolamento. Acaba procurando na bebida e nas drogas alento para o seu sentimento de frustração e vazio. Se persistir no estilo de vida que lhe causa stress acaba sucumbindo a um enfarto, adquirindo uma ulcera digestiva ou outra doença psicossomática que lhe tira a saúde de vez.
O candidato a ter a Síndrome de Burnout é em geral um indivíduo consciente, com grande senso de responsabilidade profissional, que leva a vida muito a sério, que não sabe relaxar. Não sabe dizer não, sempre disposto a atender mesmo que haja outro para fazê-lo.
Como mudar conceitos e valores pessoais e de formação profissional a essa altura da vida? Como vencer as pressões da sociedade e as exigências dos familiares? Saber o que é o melhor para a saúde eles sabem, mas pôr em prática o que se precisa, não é fácil. Aqueles poucos que arrancam para outro tipo de vida são aventureiros corajosos, em geral, sem dependentes. Eles podem ou não encontrar a cura, tudo vai depender da adaptação ao novo ambiente de trabalho. A maioria tenta harmonizar as suas necessidades com mudanças na actividade profissional que lhe dêem melhor qualidade de vida, e que lhe permitam sobreviver.
Uberaba, 28/03/2010