BURRICADAS nº 72
Burro premiado
EXTIRPAR UM TUMOR À MARTELADA (IX)
É provável, Leitor, que continue sem ver grande diferença entre o que por aí corre sobre a relação BPP/Cliente e a verdadeira natureza dessa relação. Eu explico melhor.
Se (como Governo e preclaros Supervisores pretendem) cada Cliente fosse titular de uma carteira de valores, ganharia quando as cotações subissem, e perderia quando elas viessem por aí abaixo (é isto que significa estar exposto ao risco de mercado). E sofreria também uma perda se as loan notes não fossem pagas na devida altura (agora, risco de crédito).
Na realidade, os Clientes do BPP só estariam expostos ao risco de mercado se solicitassem o reembolso antecipado das suas loan notes - podendo, então, ganhar ou perder. Todavia, a possibilidade de o valor de resgate das loan notes exceder o rendimento prometido pelo BPP escapou totalmente a quem concebeu as “Estratégias de Retorno Absoluto”. E só isso era suficiente para arruinar uma ideia tão inspirada – assim o BPP divulgasse regularmente o valor de mercado do património líquido de cada SI devedora.
Mas, mesmo aí, no resgate das loan notes, a entidade causadora do risco de crédito seria uma e uma só: o BPP. Porque, se não fossem pagos nesse momento, bastar-lhes-ia aguardar, pacientemente, pelo termo do pseudo contrato de gestão fiduciária para cobrarem do BPP, por inteiro, capital e juros (isto, se o Banco tivesse por onde pagar, obviamente).
Não ocorreu a Governo e Supervisores perguntarem-se muito simplesmente: A que riscos estavam os Clientes expostos? Que entidades causavam esses riscos? E, talvez por isso, insistem teimosamente na ficção de que os instrumentos de dívida alegadamente existentes nos patrimónios das SI, uma vez liquidados os créditos mais graduados e uns quantos ónus que sobre elas impendem, pertencem por inteiro aos Clientes.
A dura realidade é que só lhes pertencerão em circunstâncias muito, muito especiais:
(1) após o BPP ser declarado insolvente;
(2) uma vez reclamado o reembolso das loan notes (nas Ilhas Virgens Britânicas, naturalmente);
(3) se a SI devedora não proceder pontualmente a esse reembolso (o qual, recordo, será sempre pro rata o património líquido da SI devedora, sem qualquer relação com o dinheiro confiado ao BPP, ou com o juro por este prometido);
(4) se, no decurso da cobrança judicial das loan notes (nas Ilhas Virgens Britânicas, onde havia de ser?), for proposta e aceite a dação em cumprimento de alguns desses valores para liquidação da dívida;
(5) idem, se a SI devedora vier a ser dissolvida.
Isto se estas SI, de facto, tiverem existência legal - e se os Clientes entrarem, por fim, na posse das loan notes para que possam exercer directamente os seus direitos de credor.
Talvez por suspeitar de que algo não batia certo nas contas extra-patrimoniais do Banco, o BdP decidiu suspender também, e com especial ênfase, a exigibilidade das obrigações que decorressem da actividade de gestão de patrimónios a que o BPP se dedicava. Sempre com a justificação de que tal era necessário:
(1) para prevenir o risco de contágio, vulgo risco sistémico (finalidade geral);
(2) para proceder à reestruturação e saneamento financeiro do próprio Banco (finalidade específica).
Sendo a gestão de patrimónios, por definição, a prestação de um serviço do qual não decorrem obrigações pecuniárias para o prestador (salvo se este incumprir e tiver de indemnizar), cabe perguntar: Que poderes atribui a lei ao BdP, nesta matéria em particular?
Como tantas vezes acontece entre nós, também aqui o legislador não primou pela clareza (e deveria). Começa ele por referir, de forma geral e abstracta, a impossibilidade de cumprir obrigações (ou fortes indícios de que tal possa acontecer) e termina com “a dispensa temporária do cumprimento das obrigações anteriormente contraídas” (expressão que o BdP, aliás, veio a adoptar).
Mas, que obrigações? A obrigação de pagar multas de trânsito? De pagar pontualmente as rendas devidas? De pagar a fornecedores? De pagar ao pessoal? De pagar impostos? Toda e qualquer obrigação, como a de prestar contas a Clientes e Accionistas?
Para encontrar a resposta a estas interrogações há que procurar os indícios que, no entender do legislador, revelam o desequilíbrio financeiro que justificará a intervenção do BdP. Ora, aí sim, não subsistem dúvidas.
São indícios de desequilíbrio financeiro, em alternativa ou conjuntamente:
(1) fundos próprios [conceito próximo do de Capitais Próprios] abaixo do mínimo legal;
(2) rácio de solvabilidade [mede a cobertura do Activo (ponderado pelo risco) por Capitais Próprios], idem,
(3) rácio de liquidez [a relação entre as responsabilidades de muito curto prazo e os activos disponíveis para as satisfazer], idem.
À luz destes indícios, em que medida a gestão de patrimónios (e, em particular, a gestão fiduciária de carteiras de valores e, melhor ainda, as “Estratégias de Retorno Absoluto”), sendo um serviço, contribuiu para o desequilíbrio financeiro do BPP - o que determinaria a necessidade de suspender as obrigações que usualmente acompanham a prestação desse serviço?
Como facilmente se percebe, o mandato de gestão fiduciária de carteiras, mesmo que exercido com suprema expertise, por Banco ou por não Banco;
- Não leva o mandatário a contrair dívidas (salvo aquelas que tiverem origem em responsabilidade civil) ou a expor o seu património ao risco – e, por consequência, deixa-lhe intacto o rácio de solvabilidade;
- Não implica que o mandatário saque sobre a sua própria tesouraria; muito pelo contrário, ele só deverá entregar aquilo que tiver efectivamente recebido – e, por consequência, o seu rácio de liquidez poderá, até, conhecer momentos de maior desafogo;
- Sendo fonte de comissões (para não falar na aplicação por conta própria, por períodos curtos, das receitas cobradas em nome e por conta do seu Cliente) só poderá contribuir para o reforço dos Capitais Próprios do mandatário.
Forçoso é concluir que, se a gestão de patrimónios (que o BdP adianta como sendo a justificação maior da medida que tomou) fosse, no BPP, uma verdadeira actividade de gestão fiduciária, um serviço, a intervenção carecia totalmente de cobertura legal – e o BdP estaria a cometer uma ilegalidade com graves consequências, aí sim, para a estabilidade e a reputação internacional do sistema financeiro português.
Não sendo crível que o BdP tenha decidido de ânimo leve intervir só porque Governo e Administração do BPP o arrastaram para tal, resta concluir que ele bem sabia já que as “Estratégias de Retorno Absoluto” estavam erradamente contabilizadas “fora do Balanço” - e sabendo-o, nada fez de útil. Não há que falar, então, de ilegalidade, mas de incompetência e/ou desleixo – o que ainda enxovalha mais a imagem de um Supervisor.
Aliás, outras falhas se podem apontar à actuação do BdP em todo este caso, mas que eram quase inevitáveis dado o método de supervisão a que ele se tem apegado [no estilo “só nós dois (tu, Supervisionado, e eu, Supervisor) é que sabemos - e mais ninguém tem nada com isso]. Resumidamente:
- Não procedeu, como lhe competia, à caracterização dos direitos contratuais dos Clientes, direitos esses que, em seu entender (entendimento que não se dignou fundamentar), levariam o BPP ao colapso;
- Não deu público conhecimento das SI, nem fez divulgar as suas Demonstrações Financeiras (DF) no interesse dos titulares das loan notes;
- Não esclareceu publicamente que relações existiam entre o BPP e as SI;
- Permitiu que o BPP não mais prestasse contas das receitas (juros, reembolsos de capital) que pertenceriam, em primeira mão, aos Clientes (para ser coerente com a ficção que o Governo apadrinhou);
- Permitiu que às receitas das SI (algumas receitas os respectivos patrimónios terão gerado todo este tempo) fosse dado outro destino que não o reembolso das loan notes;
- Deixou envolto em mistério como é que o BPP tem pago os encargos com a sua estrutura todo este tempo;
- Condescendeu com o facto de o BPP não mais ter divulgado as suas DF, com especial realce para as Demonstrações dos Movimentos de Liquidez, para que se saiba para onde tem ido o dinheiro, nomeadamente, o empréstimo avalizado pelo Estado;
- Mantém por definir como devem proceder os gestores fiduciários relativamente às receitas que cobram em nome e por conta dos seus Clientes (presentemente, os Bancos consideram-nas como fundos depositados à ordem - o que significa: integram-nas nos seus próprios patrimónios, reconhecendo, em contrapartida, uma sua dívida à vista);
- Nada disse ainda sobre o que defende para o “caso BPP” (reestruturar? liquidar? quando as intervenções do BdP só se justificam em função da finalidade que prossigam), como se todo o imbróglio se limitasse às “Estratégias de Retorno Absoluto” – e que, uma vez este imbróglio resolvido, tudo acabará em bem (até poderá ser que sim, mas, então, a incompetência e o desleixo nas acções de supervisão ainda são mais gritantes).
Tudo isto prova à evidência que o BdP é refém dos Bancos (sobretudo estes) que supervisiona. Outra coisa não seria de esperar, aliás, de um método de supervisão assim.
Pior (para estabilidade do sistema financeiro português e para a sua reputação internacional, razões que muito preocupavam o Governo) que ser apanhado de surpresa, é dar a impressão que nada mais se sabe fazer além de empurrar a crise para diante, na esperança de que o tempo acabe por tudo resolver.
(cont.).
A. Palhinha Machado