E afinal o Império Romano acabou?
Há dias, numa reunião de amigos apreciadores da cozinha italiana, alguém trouxe à baila a queda do Império Romano. Dizem os italianos que a "pasta" deve ser preparada por forma a corresponder ao estado de espírito de quem a vai comer; aqui deu-se o contrário, foi a massa cinzenta que se adaptou ao sabor latino da "pasta". Isto fez-me procurar nos escaninhos da memória lembranças dos tempos - já muito idos - em que devorei Gibbon, por tal sinal numa tradução francesa. E, enquanto saboreava o fettuccine fui dizendo:
- "O Cristianismo acabou como o Império Romano".
- "Nada disso", afirmou peremptoriamente um ilustre catedrático jubilado que ocupava a cabeceira da mesa.
Apanhado de surpresa, invoquei em meu auxílio a autoridade de Gibbon.
O catedrático não se impressionou. - "O Império Romano – assim como os outros – desfez-se em obediência a leis históricas que determinam o advento, crescimento e decadência dos impérios ", sustentou.
Fim de papo, diriam os brasileiros. Mas para mim não. O professor obrigou-me a vigília. Estive até às 4 da manhã a rever minhas notas e enviei-lhe o seguinte apontamento.
"A queda do Império Romano Ocidental oferece um exemplo pouco comum da dissolução de um império sem intervenção ou pressão de qualquer outro de força superior. O caso não configura uma sucessão de hegemonias – o que é relativamente frequente – mas o desmoronar de uma hegemonia sem sucessor imediato, salvo o caos, facto que tem intrigado os historiadores de todos os tempos. O primeiro que tratou o tema fundado em textos da época foi, no final do século XVIII, o inglês Edward Gibbon. Ele dedicou toda a sua vida adulta ao estudo da questão e deixou-nos seis volumes cobrindo a história do Declínio e Queda do Império Romano cujo início situa em Marco Aurélio. Por via desta obra, tornou-se mentor do século e meio da expansão colonial britânica. Todos os neo-imperialistas leram o "Declínio e Queda".
Disse o Gibbon : - "Ao discutir o Barbarismo e a Cristandade eu tenho na realidade vindo a discutir a queda de Roma". E não tinha a menor dúvida: "O Cristianismo criou a crença numa vida melhor além túmulo e assim precipitou entre os Romanos uma atitude de indiferença perante a realidade vivencial que lhes enfraqueceu a vontade de lutar pelo Império". Também admitiu que o relativo pacifismo próprio do Cristianismo ajudara a minar "o espírito marcial de Roma".
Gibbon mostra que a oficialização da religião cristã provocou desentendimentos constantes no centro do poder do Império Ocidental. Ora o Papa, ora o Imperador tinham a influência dominante, o que não aconteceu no Império Bizantino (ortodoxo) onde se criou a figura do Papa-César. A esta rivalidade fracturante acresciam as lutas pelo poder entre facções religiosas que vieram complicar as que sempre tinham existido entre caudilhos militares. O Cristianismo não trouxe a unidade de comando nem sequer a unidade cultural. As seitas religiosas guerreavam-se constantemente.
Mais importante, porém: - o Império instituído por Augusto visava enquadrar politico-administrativamente um regime económico fundado no despojo de guerra, na pilhagem e no trabalho escravo. Gibbon admitia que a convergência de interesses em torno da exploração da mão de obra a custo próximo do zero – ao tempo, a principal fonte de energia – teria sido o factor que sustentou o Império. O Cristianismo veio contrariar tal prática. Portanto, o Cristianismo desmantelou a moralidade até aí prevalecente, dividiu e enfraqueceu a autoridade central, reduziu o valor marcial dos legionários e tornou o negócio imperial desinteressante. Daí que atribuir-lhe a queda do Império ganhe justificação.
No século XX, surgiram vários autores que estudaram o mesmo tema. Nenhum contesta o rigor factual de Gibbon, se bem que muitos discordem da leitura dos factos por ele feita. E foram tantos os novos teóricos que, em 1984, o professor alemão Alexander Demandt pôde publicar uma colecção de 210 teorias elaboradas sobre a queda de Roma. Algumas destas teorias são – como a do meu interlocutor – historicistas. Admitem que o fenómeno do surgimento, crescimento e posterior colapso dos impérios se rege por leis históricas. O historicismo porém tem sido objecto de duras criticas, a começar pelas de Popper e de Wittgenstein. Para estes, nada nos autoriza a deduzir leis de factos históricos. Cada processo tem a sua índole específica.
Hoje, nem sequer sabemos se o Império Romano desapareceu, pois há quem mantenha que sobreviveu sob outras formas: - latente ou subjacente estaria aí pronto a manifestar-se se e quando necessário.
Uma última observação: Não sei se Gandhi leu Gibbon, mas não tenho dúvidas de que o libertador da Índia admitiu como Gibbon que a forma mais eficaz de acabar com um império consiste em desacreditar a moralidade que o justificou.
Estoril, 22 de Março de 2010
Luís Soares de Oliveira