Aviação Portuguesa
Recentemente tive oportunidade de ver um livro, "Aviation. The early years" (Aviação. Os primeiros anos), de Peter Almond, um jornalista, filho dum oficial da RAF, que trabalhou para diversos jornais, principalmente em assuntos de aviação. O livro é editado por "The Hutton Getty, Picture Collection", que indica possuir cerca de 15 milhões de fotos de tempos antigos, e foi publicado na Alemanha em 1997. As fotos têm as legendas em inglês, alemão e francês.
O livro tem uma excelente colecção de fotos dos pioneiros da aviação, muitas delas certamente desconhecidas, mesmo de pessoas razoavelmente informadas sobre os primeiros tempos da aviação. É interessante ver tantas fotos desses tempos antigos. O livro seria magnífico se...
Este "se" é o facciosismo, infelizmente frequente, dos autores que fazem por ignorar um dos maiores feitos da aviação mundial, a I Travessia Aérea do Atlântico Sul, em 1922, por dois aviadores portugueses, Sacadura Cabral e Gago Coutinho. A falta é tanto mais vergonhosa porque o livro refere e mostra fotografias do voo de Lindberg, em 1927.
Não é de crer que nos 15 milhões de fotos da "Utton Getty Picture Collection", tão rica de fotos da aviação, não haja abundante documentação do feito dos portugueses. Sem tirar mérito a Lindberg, a superioridade do feito de Sacadura Cabral e Gago Coutinho é evidente. Lindberg não fez propriamente navegação. Apenas utilizou a bússola e, saindo dos Estados Unidos e apontando a Leste, se o motor não parar, chega-se ao lado de cá. O voo dos portugueses foi cinco anos antes, numa época em que a evolução dos aviões era comparável ao que actualmente se passa com os computadores. Mas, principalmente, o que torna esse feito simultaneamente heróico e científico, é o facto de ter demonstrado, pela primeira vez, depois dum primeiro voo de ensaio, no ano anterior, de Lisboa à Ilha da Madeira, como era possível navegar pelo ar com a mesma precisão com que se navegava no mar, com instrumentos por eles inventados e que a aviação mundial posteriormente adoptou. A excelência do método foi magistralmente demonstrada nessa espantosa etapa de Cabo Verde aos Penedos de S. Pedro, pequenas ilhotas, a maior das quais tem uns 200 metros de comprimento, atingidos com a maior precisão ao fim de mais de 11 horas de voo sobre o mar.
Todo o mundo conhece o feito de Lindberg porque os americanos não cessam, desde a sua realização, de o apregoar e glorificar. O feito de Sacadura Cabral e Gago Coutinho, que na altura teve grande repercussão internacional (os dois aviadores até foram convidados a fazer uma conferência na Sorbonne, a famosa universidade de Paris), é desconhecido no mundo porque os portugueses e especialmente os seus dirigentes mostram uma enorme ignorância em relação à importância da Travessia e nada fazem para a divulgar. O cúmulo dessa ignorância foi demonstrado pelos responsáveis de Expo que, até sendo o tema os oceanos, ignoraram totalmente a mais fantástica oportunidade para mostrar ao mundo o que esses dois portugueses fizeram. Além do hidroavião Santa Cruz em lugar de grande destaque, deveria ter havido uma série de grandes painéis com fotos e o mapa do trajecto, vídeos com filmes da época, conferências por entidades qualificadas e reedição, com traduções em diferentes línguas, de muitas publicações, principalmente esse magnífico nº 254, de Dezembro de 1959, da “Revista do Ar” (do Aero Club de Portugal), um completíssimo relato.
Em tempos bem recentes, outra grande prova dessa ignorância foi a destruição do edifício da antiga Aviação Naval (de que foi fundador e seu primeiro Director o Comandante Sacadura Cabral) e até do guindaste então usado para tirar os hidroaviões da rampa, na Doca do Bom Sucesso, donde partiram os aviadores. Em vez dum local de peregrinação, que mostrasse aos visitantes, nacionais e estrangeiros, o que foi esse feito enorme... construíram ali um hotel!
Publicado no Linhas de Elvas de 4 de Março de 2010