BURRICADAS nº 70
terra afinal não tão incognita (VII)
v Contas que digam respeito, unicamente, ao BPP e ao seu próprio perímetro de consolidação, publicadas, não há. E a primeira sensação com que se fica é a de um enorme, gigantesco “faz de conta”: o BPP a fazer de conta que era Banco; o Governo a fazer de conta que conseguia proteger “depositantes e outros credores”; o BdP a fazer de conta que agia qual Supervisor diligente, rigoroso e capaz; e os Clientes prejudicados a fazerem de conta que sempre e só tinham querido ser depositantes.
v Felizmente, as DF Consolidadas do Grupo Privado Holding em 2007 (as últimas publicadas) dão pistas preciosas para o que aqui interessa (apesar de só dedicarem umas poucas linhas ao BPP). Sempre que se consiga abrir caminho através de uma floresta de expressões “técnicas” (em inglês, obviamente). E desde que se não tropece em tanta frase laudatória, optimista, a revelar superlativa satisfação pelo trabalho feito (pois não é que até se exibem galardões internacionais, tão caros aos nossos bancários?).
v Nesse ano, o Grupo integrava, além da Sociedade Holding (com um Resultado positivo de € 21.2 Milhões), dois Bancos (BPP e BPP/Cayman, ambos com prejuízos), 11 sociedades de serviços financeiros (das quais, 2 com Capitais Próprios negativos e outras 3 com prejuízos) e 11 sociedades dedicadas à especulação imobiliária (das quais, 2 com Capitais Próprios negativos e outras 5 com prejuízos). Não, as SI que referi nos escritos anteriores não constam. Por outra parte, mal se percebe como é que o Supervisor (BdP) ia permitindo que o Banco convivesse no seu perímetro de consolidação com sociedades insolventes que não estivessem já em processo de liquidação.
v Depósitos, depósitos, e empréstimos bancários (contando com descobertos em conta, mas excluindo as operações de reporte sobre títulos, ditos repos) representavam, respectivamente, 27% e 14% do Balanço – ou seja, tinham uma importância menor na estrutura patrimonial.
v Os Resultados do Grupo eram gerados, praticamente na totalidade, por uma só sociedade de serviços financeiros domiciliada nas Ilhas Cayman [Adivinhou, Leitor! Dedicada à gestão fiduciária de carteiras, pois então], mas cerca de 1/3 desses lucros primaciais, ou provinham de negócios entre sociedades do Grupo, ou eram absorvidos pelos prejuízos de algumas restantes. Convenhamos que não é um cenário habitual em Grupos financeiros que giram em torno de Bancos. É, sim, um cenário que causa nervoso miudinho a muito Supervisor.
v Razão tinha o Despacho governamental quando se preocupava com as “Instituições Financeiras depositantes”, dado que o Grupo (inevitavelmente, através dos seus dois Bancos) se financiava, maioritariamente, junto de Instituições Financeiras não identificadas (por prazos curtos, que ia renovando até ao dia em que o carrossel parou).
v Só que, na sua maioria, não seriam depositantes, mas contrapartes em repos sobre valores mobiliários. E, pasme-se! esses repos (que totalizavam € 355 Milhões, uma vez e meia mais os Capitais Próprios do Grupo) tinham declaradamente por “intuito o financiamento das Estratégias de Retorno Absoluto (leia-se SI)” [Voltarei a este ponto no final].
v E razão teria também o BdP (não muita, porém, dado que as Instituições Financeiras envolvidas têm um peso insignificante no nosso sistema financeiro). De facto, praticamente a totalidade dos fundos captados no mercado interbancário português provinham de algumas Caixas de Crédito Agrícola (CCA) e de uma Caixa Económica (CE).
v Mas em clara violação das regras bancárias que entre nós vigoram: as operações de cedência de fundos entre Instituições de Crédito têm de passar obrigatoriamente pelo mercado interbancário (o que não era o caso, pois todas elas faziam depósitos ao balcão, como se fossem vulgares depositantes); as CCA só podem operar no mercado interbancário através da Caixa Central (que, provavelmente, desconhecia estas operações); as CE operam sempre no mercado interbancário por interposto Banco representante (nada impede que elas cedam fundos a, ou tomem fundos do Banco que as representa; mas, no caso, o BPP não era esse Banco). Recordo, Leitor, que tudo isto se passava em 2007, às claras, dito e escrito, debaixo do nariz do BdP - quando o BPP era apontado por todos como um case study.
v Não pouca estranheza causa o facto de as operações sobre valores mobiliários a regularizar (€ 721 Milhões) representarem: 1/3 do património do Grupo, três vezes e meia a sua própria carteira de títulos (nem todos eles valores mobiliários, diga-se de passagem) e três vezes os seus Capitais Próprios (em 2006 a realidade não tinha sido diferente). Se algumas dessas regularizações viessem a ser consideradas valores patrimoniais inexistentes (o que é frequente), os Capitais Próprios do Grupo (e do BPP) esfumar-se-iam num ápice. Por isso, os problemas com que o BPP se debatia não eram só de liquidez, mas de gestão e do mais elementar controlo – e vinham já do antecedente (como se diz na tropa).
v Valha-nos o Auditor Externo (Deloitte), ao garantir que as DF Consolidadas traduzem “de forma verdadeira e apropriada” a situação do Grupo como um todo, e de cada uma das Sociedades Subsidiárias que o compõem - apesar dos € 721 Milhões de valores mobiliários a regularizar. Quem sabe, sabe.
v Desde logo, fica a dúvida: o BdP alguma vez perguntou, como lhe competia, qual era o modelo de negócio do BPP? Recebeu uma resposta convincente? E ficou satisfeito com o que ouviu?
v Porque, visto de fora, o modelo de negócio do BPP surge com toda a clareza: permitir que o Grupo se financie quase sem limite (excepto os limites que as contrapartes, por sua própria iniciativa, fixarem) nos mercados interbancários, a fim de suportar custos financeiros comparativamente baixos.
v Aos olhos frios de um banqueiro o BPP seria uma “conduta” para captar fundos nos mercados interbancários - por prazos muito curtos, naturalmente (daí a necessidade imperiosa de renovar, renovar sempre; e a aflição quando a notação de rating desceu e os Bancos contrapartes começaram a ficar de pé atrás).
v Por outro lado, € 450 Milhões para salvar de apertos CCA e CE que tinham agido à margem das regras (€ 196 Milhões) eram manifestamente de mais. Mas insuficientes para que o BPP resgatasse, simultaneamente, os repos (faltariam, então, € 154 Milhões).
v Talvez fosse propósito do Governo não atender ao resgate dos repos que estariam garantidos por títulos, mas, em vez disso, privilegiar o reembolso dos depósitos à ordem (€ 262 Milhões), o que, mais ou menos, esgotava a quantia emprestada. Deixando para os depósitos a prazo (€ 318 Milhões) o dinheiro que o BPP dizia ter a haver nos mercados interbancários (€ 330 Milhões). Assim, tudo parecia bater certo.
v Mas como são muitos os depositantes (residentes e não residentes) a barafustarem por nada terem recebido, algo deve ter corrido mal. Será que o dinheiro a haver de Bancos no estrangeiro estava bem contabilizado? O Auditor Externo reconciliou saldos?
v É, porém, a cândida afirmação de ser ele, BPP, o financiador das SI que cai como uma bomba – mas não surpreende: seria caso raríssimo Bancos entrarem em repos ou noutras formas de empréstimo com sociedades meramente instrumentais (como são as SI, se existirem) sem que a Casa-mãe dessas sociedades apareça a garantir – ou a interpor-se, negociando ela própria com o Banco contraparte e efectuando uma operação simétrica com a sua Subsidiária.
v À luz do que o Grupo Privado Holding revela nas DF de 2007, o que parece ter acontecido foi o seguinte:
- O BPP (dificilmente, o BPP-Cayman que não possui Capital Social para este volume de repos) negociava com uma SI um repo envolvendo títulos que esta tinha em carteira - os quais, recordo, tinham sido adquiridos com o produto das loan notes (essas mesmo);
- Uma vez na posse temporária desses títulos, o BPP negociava sobre eles um outro repo (simétrico do primeiro) com um Banco que dispusesse de liquidez e estivesse pelos ajustes – e era neste último que tais títulos ficariam a bom recato por uns tempos;
- O dinheiro assim obtido ia, primeiro, completar o repo inicial e seria, depois, encaminhado, ou para adquirir mais instrumentos de dívida, ou para liquidar repos e empréstimos entretanto vencidos, ou (a alternativa mais simpática) para reembolsar algumas loan notes que se vencessem, ou que tivessem sido reclamadas.
v Se eu estou a ver bem todo este enredo, o credor das SI, o titular dos créditos cujas correspondentes dívidas o Fundo Especial de Investimento (e com ele os Clientes que adiram à solução proposta pelo Governo) vai ter de assumir [dívidas que, recordo, vão ter de ser pagas na íntegra, pois possuem privilégio creditório], não era, nem é, outro que não o próprio BPP (os Bancos contrapartes já devem ter sido pagos com o empréstimo que o Estado avalizou).
v É, assim, fundamental conhecer as DF (Individuais e Consolidadas) do BPP (reportadas a 24/11/2008, de 2008 e de 2009) e as DF Individuais de cada uma das SI (desde as datas em que tenham sido constituídas) para pôr tudo isto a claro. Por fim.
v Agora compreendo o porquê do black out informativo e o bullying incansável para levar os Clientes prejudicados a desistirem da garantia que o BPP lhes deu, e para concordarem de olhos fechados com o seu resgate contra o pagamento (a prazo) de uma fracção do capital hoje garantido.
v Mas quem faz as primeiras páginas dos jornais, quem tem de ser metido na linha, são os putos que andam saudavelmente ao murro durante os recreios.
(cont.)
Março de 2010
