BURRICADAS nº 69
terra ignota (VI)
v Numa primeira leitura, fica-se com a ideia de que Governo e BdP coincidiam totalmente, já sobre o que se passava no BPP, já sobre as causas de um desequilíbrio financeiro que não mais podia ser camuflado. Contudo, uma leitura mais atenta, que coteje Despacho (do Governo) e Acta (do BdP), revela divergências inesperadas.
v Para o Governo (e o Comunicado do BdP ia no mesmo sentido) era manifesto que o perigo residia nas responsabilidades que o BPP contraíra junto de “Instituições Financeiras depositantes” e que não estava em condições de solver (as tais “dificuldades de liquidez”). Bancos portugueses metidos ao barulho? Eis a grande dúvida que o Despacho não esclarecia.
v Daí o empréstimo avalizado pelo Estado e a necessidade, sentida pelo Governo, de sublinhar, algo a despropósito, que esse dinheiro não poderia ser usado para liquidar outra coisa qualquer - responsabilidades extra-patrimoniais, por exemplo (aquelas que, por definição, podem vir a ser, ou não, exigidas em data futura, consoante se verificar, ou não, uma determinada condição).
v Como responsabilidades extra-patrimoniais (ou seja, “fora do Balanço”) vencidas é uma contradição nos próprios termos (posto que, estando vencidas e sendo exigíveis, devem ser contabilizadas “no Balanço”), as responsabilidades extra-patrimoniais que o Governo tinha em mente só poderiam ser aquelas ainda vincendas (embora esta expressão não seja de todo correcta) e que ninguém, à data de 01/12/2008, saberia dizer se, alguma vez, viriam a ser exigidas (por ficarem “in-the-money”, no linguarejar dos financeiros), ou se se extinguiriam sem valor (expirando “out-of-the-money”, idem).
v E se, por mera hipótese, o Governo, no seu arbítrio, entendesse que as dívidas firmes com origem em responsabilidades extra-patrimoniais entretanto tornadas exigíveis não deveriam ser pagas em pé de igualdade com o restante Passivo do BPP, estaria:
- Ou a privilegiar credores (o que, no contexto de devedores em crise, nem sequer é muito bem visto pela Lei Penal);
- Ou a substituir-se aos Tribunais Cíveis no reconhecimento e graduação de créditos reclamáveis.
v Forçoso é concluir que, para o Governo (e o Comunicado do BdP com ele), o reequilíbrio financeiro do BPP não passava pelas “responsabilidades extra-patrimoniais ou outras decorrentes de outras actividades ou serviços financeiros prestados, directa ou indirectamente, pelo BPP” (perdoe-se-me o português, mas é assim mesmo que vem escrito no Despacho), ainda inexigíveis (logo, “fora do Balanço”) – o que até nem era descabido. A não ser assim, o empréstimo nunca poderia resolver de vez o problema, e as intenções que animavam o Governo nem chegariam sequer a levantar voo.
v Agora, o BdP. Em Acta, o BdP acolheu também a tese das “dificuldades de liquidez” e do “grave desequilíbrio financeiro”. Mas foi mais longe, e diagnosticou “riscos de contágio”, o que deixava entrever que, em sua opinião, os problemas de liquidez com que o BPP se debatia teriam origem, pelo menos em parte, na tomada de fundos junto de outros Bancos cá da terra – uma vez que não há notícia de uma corrida aos depósitos no BPP (ou em qualquer outro Banco), por esses dias.
v Aqui chegado, porém, o BdP muda subitamente de rumo. Segundo ele, os referidos problemas de liquidez teriam origem, também, na actividade de gestão de patrimónios (ainda que, por definição, esta actividade corra em nome e por conta dos Clientes/Investidores, sem que o gestor fiduciário seja chamado a pôr um cêntimo).
v Só assim se explica que o BdP tenha suspendido a exigibilidade de obrigações (aquelas que decorriam linearmente dos mandatos de gestão fiduciária) que, em condições normais, proporcionam nada mais que proveitos (comissões) aos Bancos que a elas se dedicam, sem lhe exigir Capitais Próprios em contrapartida - para supino conforto dos seus “depositantes e credores”.
v Ou não seria assim? E não sendo assim, dar-se-ia o caso de os contratos de gestão fiduciária dissimularem puros actos de intermediação financeira – apesar da contabilização que o BPP praticava havia anos, sem reparo conhecido do Supervisor (BdP)?
v Sendo o exposto tudo o que Governo e BdP se dignaram dar a conhecer, havia que procurar nas Demonstrações Financeiras (DF) publicadas pelo BPP ao longo dos últimos anos a explicação para tanta aflição:
- Desequilíbrio financeiro? Como se manifestava?
- Impossibilidade de reembolsar os fundos obtidos junto de outros Bancos? Mas em qual ou quais mercados interbancários? E em que montantes?
- Impossibilidade de cumprir perante depositantes e credores, com especial acuidade para os Clientes de gestão fiduciária de carteiras? Mas, quanto a estes últimos, cumprir o quê, exactamente?
v Não existem!
v É isso, Leitor: o BPP não tem DF publicadas, sejam elas individuais, sejam elas consolidadas. Nem as que deveriam ter sido reportadas à data de 24/11/2008 (para que se pudesse apreciar o destino dado ao empréstimo que o Estado avalizara). Nem as do exercício findo (ainda é cedo, bem sei). Nem as do exercício de 2008. Nem as de qualquer ano para trás. Nada.
v Conhecem-se, sim, as DF Consolidadas do Grupo Privado Holding (onde as contas do BPP aparecem diluídas) e as DF Individuais da Privado Holding, SGPS (a sociedade holding do Grupo) até 2007 (inclusive). De 2005 em diante, o documento indica na capa que se trata, também, da prestação de contas do BPP. Em 2004, mais prosaicamente, a publicação limitava-se a anotar, na 2ª folha, que a actividade da Privado Holding, SGPS, se identificava com a actividade do BPP (muito embora os números no interior não confirmassem exactamente essa declaração).
v Pobres dos nossos preclaros Supervisores. De tão assoberbados, nem atentavam nas capas dos documentos que deviam examinar, ou nos cabeçalhos que, do alto de cada folha, sorrateiramente, lá iam revelando a entidade cuja informação financeira estava a ser divulgada. Nem tempo tinham para recordar que os Bancos, mesmo quando integrados num Grupo, devem publicar DF Individuais e Consolidadas ao seu nível (segundo as recomendações do Comité de Basileia).
v E assim o BPP (ou o Grupo?) lá ia singrando quase sem deixar rasto.
(cont.)
Março de 2010