CONVERSA DE BISTURI
IPO, Lisboa, anestesia local para tirar uma excrescência com aspecto benigno que sem autorização se me implantara nas costas.
Conversa da enfermeira para ver se eu me sentia bem: - Então o Senhor Henrique onde trabalha?
Resposta do Senhor Henrique, eu: - Não trabalho em lado nenhum; estou reformado.
Continua ela: - Tão novo?
Continuo eu: - Obrigado pelo piropo. Bem se vê que não dorme comigo…, sim reformado. Trabalho só para mim. Só faço o que quero.
Diz ela: - Mas que rica vida!
Atalha o cirurgião, meu conhecido da banda de fora do hospital, antes que a conversa descambe: - Aqui o Senhor Doutor o que gosta é de estudar e escrever.
Continua ela: - Então o Senhor reformou-se para estudar em vez de passear?
Continuo eu: - Ah sim, passeio todos os dias mas a cavalo para não gastar as solas dos sapatos.
Diz ela: - Mas gasta as ferraduras do cavalo… E que estuda o Senhor Henrique?
Digo eu: - Várias coisas. Agora estou a estudar o conhecimento, a certeza e a verdade.
Aflita, acode ela: - O Senhor Henrique está a sentir-se bem?
Descontraído, respondo: - Oh Senhora enfermeira, esteja tranquila. Não estou a entrar em transe nem a tresloucar por efeito da anestesia. Na verdade é isso mesmo que estou a estudar – o conhecimento, a certeza e a verdade.
Atónita, pergunta ela: - Mas isso estuda-se?
Pergunto eu – O que é o conhecimento?
Duvidosa, responde ela: - Os conhecimentos são as pessoas nossas conhecidas…
Quase a rir, digo eu: - Não, o conhecimento, no singular, é o que nós sabemos.
Diz ela: - Ah sim! Eu sei que a vida está cara e que no Sábado fui ao cinema com o meu marido.
Digo eu: - E eu sei que as linhas da oferta e da procura se cruzam num ponto e que é aí que os preços se formam. Está a ver? A Senhora sabe coisas que eu não conseguiria imaginar e eu sei outras que à Senhora não interessam. E, no entanto, estamos aqui na mesma sala, a meio metro de distância um do outro e cada um de nós é o centro dum Universo que cada um de nós julga infinito e que até há momentos se ignoravam por completo…
Desconfiada da minha sanidade mental, diz ela: - E é isso que o Senhor Henrique estuda?
A gostar do rumo da conversa, digo eu: - Isso é o universo do conhecimento mas estudo-lhe também a origem; não a dimensão nem o conteúdo.
Diz ela a gozar dirigindo-se ao cirurgião: - Oh Senhor Doutor. Da próxima vez temos que ter mais cuidado com o tipo de anestesia que damos a este Senhor…
Informa o cirurgião: - Não vai haver mais anestesia porque isto já está a chegar ao fim.
Ainda a tempo, pergunta ela: - E que mais é que o Senhor disse que está a estudar?
Já a sentir que me estavam a pôr o penso, respondo: - A certeza e a verdade.
Receosa, diz ela: - Até estou com medo de perguntar o que isso é…
Já de pé e a sorrir, informo: - A certeza é um valor relativo e a verdade é um ponto no infinito.
A caminho da porta, recomenda-me ela quase em surdina: - Olhe! O Senhor trate-se!
Abraços a quem me fez bem!
Lisboa, Janeiro de 2010
Henrique Salles da Fonseca