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A bem da Nação

“Antes morrer livres . . .


. . . que em paz sujeitos” – eis o lema dos Açores, honra a que fizeram jus durante a dominação filipina como bolsa de resistência assanhada e durante as lutas liberais em que tomaram claro partido por D. Pedro IV que lá foi receber o apoio dos Bravos do Mindelo.

Quanto à heráldica expressa no brasão, outros mais eruditos que a expliquem que eu me atenho apenas aos cornúpetos tão profusos na ilha que visitei durante três dias, a de S. Miguel. Mais plebeias, as vacas açorianas são frísias e não pretas retintas como as da corrente e gargantilha em ouro.

O Concelho de Ponta Delgada tem cerca de 64 mil habitantes. Para quem nunca lá foi, pode comparar com Loulé que tem 60 mil, Santarém 63 mil e a Moita 68 mil. Urbanisticamente, Ponta Delgada tem um centro relativamente denso mantendo a majestática arquitectura tradicional de floreada cantaria basáltica quase negra. Se é que por acaso já lá não anda, vê-se que por ali andou muito dinheiro. A pequena, calma e asseada curva marginal a lembrar o enorme calçadão carioca e a fazer inveja à hoje arruinada marginal de Luanda que em tempos teve a honra de se chamar Paulo Dias de Novais. Quem tem mar não o desperdiça, a menos que se chame Lisboa com o seu fabuloso mar interior a que modestamente chamamos estuário de rio.

Diz quem conheceu os Açores antes do 25 de Abril que o progresso foi enorme de então para cá mas eu não posso fazer dessas comparações e limito-me a constatar a realidade actual. No máximo, poderei imaginar como era a vida no arquipélago antes das estradas estupendas por que hoje circulamos, quando não havia televisão, quando o horizonte mais amplo que se perspectivava era o dos binóculos do vigia das baleias e quando a rotina passava o dia curvada no banco da ordenha das vacas.

Vi no aeroporto uma pista que dá a sensação de ser suficiente para aterrar e descolar sem interrupção, uma aerogare funcional mas com um friso decorativo de cores vivas que dá o toque do que nos espera em São Miguel: nada de luxos, esmero sistemático, asseio total, gosto pela qualidade. Desejo que o padrão siga pelas outras ilhas.

Fiz o périplo da ilha. As estradas que não estão impecáveis é porque estão em recuperação. As casas ostentam uma qualidade rara, deviam ter sido todas pintadas na véspera e ainda por lá andavam alguns jardineiros. Cozinha farta de peixe e carne, vinho do Pico, cerveja especial, queijos de muito maior variedade do que os conhecidos no Continente. Preços sem história.

Mas do que vive aquela gente? E aqui entram as suposições de quem por lá só andou três dias.

Vêem-se vacas por tudo quanto é sítio e sabemos que a quota nacional de produção leiteira é sistematicamente excedida por causa dos Açores. Ainda bem que assim é, acho eu. Nós temos que produzir aquilo para que temos vocação e em que dispomos de vantagem comparativa. Lacticínios, por exemplo e nomeadamente nos Açores. Não podemos continuar a pactuar com a política europeia que nos impõe limites à produção leiteira como forma de protecção dos interesses franceses. Não faz qualquer sentido imaginar que um eventual défice português de produção leiteira possa resolver o problema do superávite europeu, nomeadamente francês, nem dá para imaginar como poderemos vir a causar alguma concorrência no mercado internacional quando as maiores produtoras de leite transformado em Portugal já foram tomadas por interesses suíços e franceses. Estou portanto completamente solidário com os protestos dos agricultores açorianos contra as quotas de produção leiteira. E quanto à PAC, prometo voltar.

Não se pode pensar nos Açores sem que nos lembremos do mar mas não vi mais pesca do que a artesanal e mesmo a fábrica de conservas em Rabo de Peixe devia estar fechada pois, apesar do horário, não vi que alguma agulha bulisse. Parece, contudo, que aquele porto de pesca dispõe de condições de fazer inveja a muitos outros com verdadeira actividade piscatória.

A pesca açoriana pareceu-me, portanto, tanto ao abandono quanto a continental e eventualmente pelo mesmo tipo de razões: opacidade do mercado na chamada primeira venda por manipulação comercial pelo lado da procura e consequente desmotivação económica da oferta que não tem qualquer poder negocial nem especiais capacitações profissionais. Resta-me, portanto, a convicção de que não há um problema com as pescas nos Açores: há um problema de pescas em Portugal. Creio que está mais do que chegado o momento de se pensar num sistema que induza transparência ao mercado do peixe. As tradicionais lotas já deram há muito o que tinham a dar, se é que alguma vez deram alguma coisa . . . Se todas as circunstâncias económicas e comerciais evoluíram, porque é que continuamos a utilizar instrumentos tão velhos como os instaurados pelo rei D. João III?

Em compensação, as baleias continuam a ser alvo da atenção dos açorianos. Com a diferença de que não são baleias mas sim cachalotes e de que já não são esquartejadas mas sim fotografadas em plena liberdade e à disposição dos turistas que por lá começam a aparecer.

Por enquanto, a actividade turística de observação das baleias não passa de uma potencialidade remotamente relevante mas tenhamos esperança de que o negócio floresça e que venha a representar alguma “coisa” mais interessante do que os múltiplos campos de “golf” que estranhamente começam a enxamear São Miguel nos locais mais inesperados sem qualquer valor acrescentado relativamente aos homólogos escoceses.

A actividade turística está em pleno desenvolvimento, os hotéis estão a aparecer com verdadeira qualidade e enquanto lá estive decorria a sétima edição do “Festival Musicatlântico” com a participação de intérpretes forasteiros para eventual satisfação dos melómanos residentes mas – mais importante ainda, na minha opinião – com lugar de destaque para a Orquestra de Câmara de Ponta Delgada. Passou-me despercebida a parte do programa em que se dava relevo aos compositores açorianos mas como só lá estive três dias, não tive tempo de ler tudo. Só conheço Francisco de Lacerda mas deve haver muitos mais e eu espero que a Universidade dos Açores se empenhe vivamente na identificação de muita “coisa” que deve estar escondida por tudo quanto sejam arquivos laicos ou religiosos, públicos obrigatoriamente mas privados também se pedidos com jeitinho.

E assim passo para a instituição que faz a diferença: a Universidade. Desejo ardentemente que a Universidade dos Açores se constitua como verdadeiro motor do desenvolvimento intelectual, científico e profissional dos açorianos do séc. XXI e seguintes e que não se deixe cair na funesta missão que coube à de Coimbra durante todos aqueles séculos em que vestiu Portugal de crepes, o ajoelhou ao serviço do clero e o puniu na fogueira inquisitorial.

Aproveitem bem o que generosamente vos é posto à disposição pelo Orçamento da República, pela Comissão Europeia e – mais importante que tudo – não defraudem a esperança que em vós deposita a diáspora e mantenham a honra da liberdade pois mais vale morrer livre que em paz sujeitos.

Como foi possível eu ter vivido 60 anos sem conhecer os Açores?

Lisboa, 18 de Julho de 2005

Henrique Salles da Fonseca


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