VISÃO GLOBAL
José Cutileiro e Ricardo Alexandre, no recente livro Visão Global ([1]), escrito em estilo descontraído, tipo "parada-resposta", fazem o ponto das relações internacionais e levantam questões de grande interesse das quais refiro algumas escolhidas a esmo.
A páginas 122, JC indaga o significado da expressão "comunidade internacional" usada pelo jornalista. "É uma expressão que acho sempre curiosa", observa. Constata que o significado que lhe é atribuído varia em função da situação geográfica do observador e conclui que por tal se designa efectivamente os EUA e mais uma ou outra potência com condições de – e disposição para - intervir em determinadas ocorrências na área geográfica em que se situa o observador, o que acontece cada vez com menos frequência. Nenhuma referência às Nações Unidas e outros areópagos onde fala toda a gente ([2]).
E tem razão. Não se pode com rigor chamar comunidade a uma colecção de estados e nações que prezam mais as suas diferenças do que qualquer eventual semelhança. A comunidade tem cultura própria que inspira aos seus membros a prática da solidariedade entre os vivos e entre estes e os mortos (respeito pela história). Ora, os estados nacionais que têm passado comum são excepção e mesmo esses lêem a história de modos diferentes. O sentimento que se reflecte no comportamento dos estados – com excepção dos europeus e só há alguns anos a esta parte – é o medo que inspiram uns aos outros. Nada menos comunitário. Tão pouco se pode falar de "sistema internacional" pois não se trata - nem se aproxima - de um corpo organizado em função de uma finalidade geral. Poderíamos talvez falar de sociedade dos estados uma vez que, a partir do iluminismo, os estados se tem esforçado por submeter o relacionamento entre si a regras de direito. O direito internacional porém, é facultativo e, raras vezes prevê meios de execução.
A UE tende a omitir-se em questões de segurança. A segurança fundada no MAD extinguiu-se com o muro de Berlim. O caso da Coreia do Norte mostra uma vez mais que os "regionais" não conseguem impedir a proliferação. A consciência de interdependência resultante da globalização da economia é ainda mais recente e não inspirou modelos de gestão integrada. O atraso é ainda maior no que toca ao ambiente, como infelizmente a Conferência de Copenhaga demonstrou agora mesmo.
A predominância persistente de situações reguladas pela relação de forças leva a admitir que os estados nacionais formam um agregado próximo de um modelo social graduado e hierarquizado em termos de poderio (capacidade de controlo) e influência (talento comunicador) dos seus membros. Ou seja, a realidade do universo das relações internacionais é a hegemonia e esta continua a ser o sustentáculo da ordem e a única forma de chegar ao direito.
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A problemática da hegemonia é conhecida. Assim:
- A hegemonia só subsiste se eliminar rivais mesmo os de dimensão meramente regional. Por isso, numa sociedade hegemónica, o relacionamento entre o primeiro e os seus imediatos domina todos os quadrantes, deixando pouco ou nulo espaço para exercício de autonomia por parte dos restantes membros.
- A hegemonia exige agentes obedientes nos vários estados subordinados. Daqui resultam dois tipos de situações: (1) o chefe local fiel à lógica hegemónica desentende-se com os seus e, se persiste, descamba em tirano sem escrúpulos e o seu regime torna-se "cleptocrático" ou (2) o "chefe" trai o seu protector hegemónico e identifica-se com a lógica local, caso em que a hegemonia se vê forçada a intervir para o corrigir, afastar ou eliminar. Estes dilemas nunca foram resolvidos.
- O problema vital das hegemonias é contudo o seu custo. O sacrifício que impõe é pesadíssimo, tanto em termos humanos como físicos. As mudanças hegemónicas deram-se mais vezes por cansaço do hegemónico do que por obra de émulos portadores de energias novas. A hegemonia americana, no que toca aos sacrifícios humanos, ainda não encontrou os seus mamelucos; no que toca aos custos financeiros, distribui o mal pelas aldeias e pelas gerações mediante inflação e desvalorização do dólar, prática que tem limites. George W Bush e os seus apoiantes não pareciam conscientes de tais limites e favoreceram uma hegemonia intervencionista; já a eleição de Obama – opção pelo estilo conciliador – denota cansaço.
Quanto ao destino político de Obama, admite Cutileiro que ainda não chegaram os dias dos testes cruciais e decisivos. Teremos que aguardar.
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O papel dos BRIC, sobretudo a China e o Brasil de Lula – a grande novidade do dia – é tema que os autores tratam em profundidade. E justificadamente o fazem. No Brasil prevalece o "bom senso" – de resto, sempre prevaleceu ou não fosse povo de extracto cultural lusitano. A relação Brasil--EUA resultará naturalmente em apoio da democracia – mais humana, sem dúvida. Já a relação China-EUA encerra problemas potenciais que poderão afectar o futuro da humanidade.
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No último capítulo os autores fazem uma avaliação da posição de Portugal no mundo. Reconhecem que o país, por força da sua história, dispõe de uma gama de trunfos mais vasta do que a que se oferece a quase todos os outros países; admitem também que a visibilidade portuguesa teria aumentado como resultado de ocuparmos agora lugar na carruagem da UE. JC manifesta contudo a opinião de que no quadro europeu, os pequenos são irrelevantes – a Europa a doze ou a vinte e sete será sempre a Europa dos três e meio (agora com mais um meio que é a Polónia).
JC aprova o uso que demos à ajuda recebida da UE, afirmação que não deixará de constituir surpresa para alguns dos meus colegas economistas com os quais me solidarizo neste particular. Por fim, reconhece que estamos fortemente condicionados pela nossa posição ibérica ([3]).
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Vale sempre a pena ler um livro que nos ensina muito sobre o mundo em que vivemos, sobretudo quando os autores se mostram conscientes da enorme complexidade dos fenómenos internacionais e cientes da insuficiência própria do espírito humano para abarcar e relacionar coerentemente todos os dados inerentes à fenomenologia sociopolítica mundial. Para os que pensam que os problemas do mundo se resolvem pelo pacifismo, pela aposta nos direitos do homem e pelas manifestações explosivas em prol da conservação da natureza – as "almas piedosas", com lhes chama J. C. - o livro constituirá desapontamento. Porém, para os queapreciam um pensamento escorreito, isento de historicismo oco e de construtivismos perniciosos, a leitura do "Visão Global" é altamente recomendável. Além do mais, mostra-nos que a consciência dos limites do nosso conhecimento é ainda a melhor esperança de um progresso científico e social saudável.
Estoril 23 de Dezembro de 2009
[1] José Cutileiro e Ricardo Alexandre, Visão Global, Prime Books, Lisboa, Novembro 2009
[2] Página 167. Cutileiro afirma que o que sai (resoluções) das NU "revela grande falta de noção de como é que o mundo funciona e .. poderia ter sido enunciado por um grupo de senhoras vicentinas durante um chá em Alcobaça"
[3] Cimeira das Lajes (página 236)