UMA PRENDA DE NATAL DA ANTÍGONA – 3
Uma época de filhos de cães – 3
A visão deste futuro mirífico foi bruscamente perturbada pelos latidos de um cão que dava a impressão de ser de uma espécie rara, desconhecida no bairro. Havia nestes latidos uma notável dose de insolência e como que um desafio lançado contra sabe-se lá que raça maldita. Subjugado e seduzido por este desempenho, Mokhtar dispôs-se a procurar o animal com a intenção de o adoptar, caso ele tivesse fugido a um dono autoritário e mal-educado. A ideia de passear com um cão pela trela enchia-o já de júbilo como um ataque subtil ao mito insuportável da supremacia do homem. Pôs-se assim a inspeccionar a esplanada, mas, em vez de um encontro amigável com um membro eminente da raça canina, foi ofuscado por um esplendor de cores cambiantes sob os raios pálidos de um sol de Inverno, bruscamente surgido de entre as nuvens, como que para participar neste surpreendente espectáculo feérico.
O responsável por esta intrusão excêntrica da moda, símbolo da modernidade, no cenário imundo da esplanada, era um jovem dos seus vinte anos, de físico atraente e porte aristocrático, sentado a uma mesa à entrada do café, e que exibia uma panóplia vestimentar de grande ousadia na escolha dos tecidos e das cores. Este jovem esteta envergara, para uma visita turística nestas paragens deserdadas, calças de linho branco, camisa de seda vermelha, bem aberta no peito, e casaco preto de caxemira, com um pequeno ramo de jasmim na botoeira. Para completar este traje magnificente e requintado, calçava sapatos de verniz, como os que usam os ministros e os proxenetas quando vão à ópera. Mas as originalidades deste enviado do diabo não se ficavam por aqui: estava a fumar um cigarro de haxixe, cujo fumo parado desenhava uma espécie de auréola sobre a sua cabeça.
Perante esta cena inusitada, Mokhtar aguardou calmamente o que se ia passar a seguir, estranhamente consciente de que este príncipe da elegância, perdido neste lugar, tinha para lhe transmitir uma mensagem da mais alta importância. Dir-se-ia que o portador da mensagem se apercebera desta expectativa e que estava pronto para lhe responder, pois, sem mais delongas, abandonou a sua pose descontraída, endireitou-se na cadeira, ergueu os olhos ao céu, e depois, com a determinação do cantor que entoa a ária que o celebrizou, pôs-se a ladrar com um tom implacável e obstinadamente sarcástico, parecendo assim exprimir a sua raiva para com os habitantes da casa em frente. Passado um momento, parou com os latidos e virou-se para Mokhtar, visivelmente satisfeito com a sua proeza.
Mokhtar aplaudiu discretamente para não acordar o homem adormecido no seu banco, único elemento de realidade tangível que o impedia de ficar alarmado. Sem qualquer dúvida, estes latidos continham um sentido oculto que ele tinha de decifrar o mais rapidamente possível, mas o imitador de cães furiosos não lhe deu tempo para isso ao desferir-lhe a seguinte frase insensata:
- Estava certo de que compreenderias.
- De onde vem essa certeza? – perguntou Mokhtar. – Gostaria muito de conhecer as razões dela.
O jovem pimpão, que se chamava Haydar, levantou-se para se ir sentar a uma mesa junto de Mokhtar e começou a falar com um tom fortemente caloroso, como se pretendesse cativar o seu interlocutor com vista a uma cumplicidade eterna.
- Passava por aqui, guiado apenas pelo acaso, quando te vi sentado, sozinho, neste café piolhoso. Mas, em vez da tristeza e do abatimento do solitário, pairava nos teus lábios um sorriso muito especial, o género de sorriso malicioso que é um desafio à infâmia universal. Sentias-te mais poderoso do que algum monarca jamais foi. Isto levou-me a pensar que tinha obtido a tua compreensão.
Albert Cossery
FIM
Tradução: Luís Leitão
Revisão: Carla da Silva Pereira
1979_2009
Trinta anos de minoria absoluta
Trinta anos de insolências
Antígona – Rua da Trindade, 5 – 2º fte; 1200-467 Lisboa | Portugal; Tel. (+351) 21 324 41 70