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A bem da Nação

UMA PRENDA DE NATAL DA ANTÍGONA – 2

 

Uma época de filhos de cães – 2

 

A Mokhtar não desagradou esta expulsão brutal, que lhe conferia um estatuto de dissidente político e de mártir da liberdade de expressão, capaz de suscitar o interesse, para além dos mares, dos intelectuais dos ricos países democráticos. Estes bravos pensadores, adeptos de um humanismo sem fronteiras, tinham a faculdade de tornar célebre a pessoa mais insignificante do planeta, desde que esta tivesse sofrido alguns vexames ou alguns meses de prisão por parte de um governo qualificado, para a circunstância, de ditadura sangrenta. Esta ideia divertia-o como uma enorme brincadeira.

Por um momento, entreteve-se com a perspectiva de um exílio dourado em terra estrangeira, solicitado e adulado por todas as cabeças pensantes do hemisfério ocidental.

Tratava-se, e ele tinha consciência disso, de uma apoteose longínqua, e mesmo improvável, pela simples razão de que o género de dissidência de que era o genial inventor nada tinha em comum com uma oposição a qualquer governo.

A Mokhtar todos os governos eram completamente indiferentes, fossem eles eleitos ou impostos pela força das armas, pois todos provinham do mesmo molde e eram compostos pelos mesmos malfeitores. Era, pois, estúpido querer derrubar um governo, para depois ficar diante de outro pior do que o anterior. E na obrigação de recomeçar indefinidamente esta comédia grotesca. Para Mokhtar, a única maneira de combater um regime político só podia conceber-se no humor e no escárnio, longe de toda a disciplina e das fadigas que qualquer revolução geralmente implica. Na verdade, tratava-se de conseguir uma distracção fora das normas e não uma prova debilitante para a saúde.

O seu combate contra a ignomínia reinante não tornava necessário um grupo armado nem mesmo uma sigla que referisse a sua existência. Era um combate solitário, não uma congregação de massas ululantes, mas uma operação prazenteira de salvação da humanidade, sem lhe pedir a opinião e sem esperar uma autorização vinda do céu.

Há muito tempo que Mokhtar decidira que o seu papel na vida seria o de dinamitar o pensamento universal e os seus miasmas fétidos que atulhavam há séculos o cérebro fraco dos miseráveis.

Esmagadas e fragilizadas, as massas humanas ainda sobreviventes à superfície do Globo foram levadas a acreditar em tudo o que lhes conta uma propaganda que ofende em permanência a verdade. Afigurava-se-lhe com nitidez que o drama da injustiça social só desaparecerá no dia em que os pobres deixarem de crer nos valores eternos da civilização, um palmarés de mentiras deliberadas, programado para os manter para sempre na escravidão. Por exemplo, a honestidade.

Os pobres estão convencidos de que a honestidade é a virtude fundamental que lhes vai salvar a alma das chamas do inferno, e esta crença condena-os a uma miséria endémica, enquanto os ricos, cujos antepassados inventaram a palavra, sem jamais terem acreditado nela, continuam a prosperar. É certo que esta análise, aparentemente pueril, da economia capitalista, não satisfará os espíritos sérios, inimigos implacáveis da verdade, porque o seu simplismo impede-os de parecer profundos.

Três meses antes, quando se candidatou a este lugar de professor, Mokhtar não ambicionava de maneira nenhuma ser profundo em matéria de ensino. Professor era o emprego ideal para começar a pôr em prática a destruição do discurso pernicioso habitual em todos estes continentes, cuja tradicional impostura é proclamarem-se civilizados.

Com efeito, a escola proporcionava-lhe uma ocasião magnífica para influenciar jovens alunos, mais dispostos à subversão do que os adultos anestesiados de longa data pelo vocabulário dominante.

A indignação do director deu-lhe a certeza de ter sido bem sucedido, pelo menos em relação a uma parte ínfima da população, mas este magro resultado representava uma carga explosiva, manipulada por três dezenas de adolescentes dotados de uma consciência renovada, e que se preparavam para prodigalizar por todo o lado o seu novo saber. Mokhtar via este bando de alegres missionários crescer e disseminar-se por todos os países e, porque não, além-fronteiras em direcção às tristes cidades do Sul moribundo.

(continua)

 Albert Cossery

Tradução: Luís Leitão

Revisão: Carla da Silva Pereira

  1979_2009

Trinta anos de minoria absoluta

Trinta anos de insolências

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