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A bem da Nação

O SEMPRE ACTUAL MALRAUX



NOTA PRÉVIA
O texto seguinte tinha como destino constituir um comentário ao artigo publicado em 5 de Fevereiro de 2006 sobre as previsões que André Malraux fez há 50 anos. Contudo, parece importante de mais para que fique como um mero comentário e por isso decidi dar-lhe corpo de artigo autónomo; até para que o comentário que já lá está ao artigo inicial não tenha a veleidade de se confundir com a qualidade do texto que segue.
Henrique Salles da Fonseca


- X – X – X – X –


Malraux foi decerto um dos homens esclarecidos do século XX, até quando lutou pela República Espanhola contra o nazi-fascismo, e este seu texto, publicado pelo “A Bem da Nação” em 5 de Fevereiro de 2006, mostra a que ponto ele foi um dos raros do seu tempo a avaliar a violência da reacção islâmica e a compará-la com o impacto do leninismo.
Contudo não era vidente, não podia prever o futuro. Este texto tem cerca de meio século, e no final dos anos 50 ele não sabia que o comunismo tinha pés de barro e que o capitalismo modulado pela social-democracia iria ser mais forte. Do mesmo modo não previu que o então sultão de Marrocos, recém-chegado do exílio de Madagáscar, iria ”dar a volta por cima” proclamando-se rei (“malik”) e consolidando a sua sucessão – o seu neto é hoje um monarca relativamente bem implantado. Bourguiba foi sempre um ditador moderado, afastado no final da vida mas que construiu uma Tunísia sem fanatismos, um dos poucos bem administrados e até relativamente próspera – o seu forte sector turístico vai ser agora injustamente vítima dos receios emotivos, mas neste caso injustificados, dos turistas europeus.

Malraux foi clarividente ao pressentir que os novos estados islâmicos tendiam para as ditaduras. De Malraux, a meu ver, é mais apropriado dizer que constatou o papel dos ditadores-tiranos como mal temporariamente inevitável do que propriamente necessário. (O seu companheirismo em relação a De Gaule insere-se obviamente noutro plano). Mas a verdade é que o mundo islâmico está muito longe de ser uma realidade homogénea ou minimamente coerente - a Argélia foi muitos anos um bastião do radicalismo e agora está claramente a evoluir para a moderação. O Iémen, o Omã, os Emirados, o Qatar, o Bahrein e o Kuwait, vizinhos dos sauditas, não querem nada com o wahabismo, ainda menos com a AlQaeda. O xiismo não fez as pazes com os sunitas, seus velhos inimigos, continuam as matanças, no Iraque mas também no Paquistão – sabemos que o Iraque é uma incógnita que, quanto a mim, vai trazer surpresas.

Malraux acreditava que soluções parciais, se tomadas a tempo, poderiam ter contido a pressão islâmica – a meu ver, “ wishfull thinking“ sem bases reais. E quando falava nessa altura nos “miseráveis” não previa que 50 anos depois o problema comum desses países já não é a miséria generalizada (as receitas do petróleo têm sido gigantescas *) embora subsistam países de grande pobreza como o Bangladesh ou o Paquistão, e em parte o Egipto ou Marrocos – regiões superpovoadas. Aliás nessa altura também não pôde prever que um dos problemas mais graves do islamismo (e do mundo) seria a sua incrível e irresponsável taxa de natalidade - a religião inibe de facto que se incentive, ou até se divulgue, o controle dos nascimentos e o planeamento familiar.

A África negra, ao contrário da sua previsão, não terá papel de relevo na questão islâmica, embora com episódios inconsequentes na Nigéria, e pouco mais.

Do mesmo modo que ninguém previu o colapso iminente do “ socialismo real “, também hoje é difícil prever o que será o mundo islâmico nas próximas décadas – embora eu acredite que a história está em aceleração e que um dos efeitos da globalização será que a civilização islâmica irá sair da Idade Média mental em que se encontra muito mais depressa que as avaliações implícitas em muitas análises actuais – e que a laicização trazida pela Revolução Francesa há apenas 200 anos acabará por chegar às sociedades islamizadas, provavelmente com custos pesados mas em muito menos tempo.

No curto e médio prazo a humanidade terá de conviver com a mistura explosiva do fanatismo kamikaze com a proliferação do armamento nuclear, com efeitos difíceis de prever. O Irão é o exemplo mais actual – embora o xiismo não saiba coabitar com o fundamentalismo sunita, AlQaeda ou outro. O ponto sensível mais evidente será o eterno conflito Israel-Palestina, mas aqui eu penso que a vitória eleitoral do Hamas foi uma boa coisa – há questões vitais que têm de se encarar de frente (há alguma semelhança com o processo Espanha - ETA).

Não devemos subestimar o papel da Turquia, ciosa de não se identificar com os árabes e que é o mais laicizado dos países de religião islâmica (graças a Ataturk) e que está digerindo um processo de europeização mais sério do que pensam muitos observadores. Vai ser muito importante a sua adesão à União Europeia e a sua aprendizagem na aplicação prática dos princípios a que vai aderir – não vai ser fácil mas já está em marcha.

A grande incógnita permanece o tempo que levará a ocorrer a implosão das sociedades islâmicas fundamentalistas, cuja inviabilidade sócio-económica face à globalização me parece evidente.

Nota
*Não tenho dúvida de que, sobretudo no Médio Oriente, o nível material de vida teve uma subida bastante espectacular em países como a Arábia Saudita e os restantes da Península Arábica e ilhas adjacentes, de população escassa, e ainda no Irão (no tempo do Xá, embora as massas rurais beneficiassem menos), no Iraque (até às guerras, e apesar dos desvarios étnicos do Saddam) no Azerbeijão. Até mesmo a Argélia e o Egipto, com proveitos menores, puderam temperar o empobrecimento devido à demografia. Não esquecer que o Médio Oriente era uma região de caravanas de camelos, em economia de subsistência, até à chegada do ouro negro (lembremos a epopeia do Lawrence). No caso do mundo islâmico não me parece que seja a inveja ou os desequilíbrios internos os principais motores da presente crise. Nos casos mais graves são demasiado medievais – é instrutivo verificar que o país mais fundamentalista, a Arábia Saudita, é também o mais rico de todos, onde a população tem um padrão material de vida elevado, com serviços públicos gratuitos. E dali saiu Ossama Ben Laden, arqui-milionário e terrorista-chefe por fanatismo religioso (anti-cruzado recuperado do século X).
A situação é, portanto, mais complexa e menos redutível a estereótipos. Mas mantenho a esperança (decerto “wishfull thinking”) de que as novas gerações, pelo simples importante facto de que se informarão melhor, serão mais dialogáveis.

Fevereiro de 2006

Eugénio Marques Motta

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