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A bem da Nação

MÚSICA!, MAESTRO

Num dos jornais que a TAP me ofereceu na viagem que há pouco fiz de Ponta Delgada para Lisboa li um anúncio da Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura sobre uma audição pública àcerca da difusão da música portuguesa na rádio. De imediato decidi inscrever-me pois tenho opinião sobre a matéria e porque acho que a Democracia deve ser participada, ou seja, não é elegê-los e deixá-los legislar à vontade como se fossem nossos donos. Não são nossos donos mas tão só nossos representantes e, como tal, nós os representados temos obrigação de dizer o que pensamos e, ainda por cima, com eles a pedirem-nos a opinião sem termos que fazer alarido para sermos ouvidos. Foi, portanto, com espírito perfeitamente construtivo que me apresentei naquele serviço cívico; o gesto parlamentar era bonito e merecia ser correspondido pelo cidadão comum. Lá fui.

Perante Deputados dos cinco Grupos Parlamentares, éramos 29 inscritos para botar faladura e cerca de outros tantos como meros assistentes. Porque convém evitar que todos falem ao mesmo tempo, coube-me ser dos primeiros a avançar. Dispondo de cinco minutos, devo ter utilizado trinta segundos apenas para me apresentar como simples consumidor de música clássica e para propor como definição de música portuguesa aquela que seja composta por português e interpretada tanto por portugueses como por estrangeiros e aquela que, embora de autoria estrangeira, seja interpretada por artista português. Dei como exemplos as Sinfonias de Joly Braga Santos tocadas pela Orquestra do Estado Húngaro e os Nocturnos de Chopin interpretados por Maria João Pires. Ao longo da sessão percebi que a minha definição já era aproximadamente a que constava dos cinco Projectos-lei que eu não conhecia. Senti então lá ter ido ensinar o Pai-nosso ao Vigário mas, no final de contas, fiquei satisfeito por constatar que não ando a navegar numa órbita assim tão diferente da generalidade das outras pessoas. Os presentes tiveram a amabilidade de não me chamarem tonto por lá ter ido dizer tamanha vulgaridade.

Ultrapassada sem qualquer espécie de luta esta matéria que eu considerava estrutural, deixei-me ficar para tentar perceber com mais detalhe o que estava em causa. E o que é que eu fiquei a saber? Que a Lei que está em vigor há cerca de 20 anos vem sendo ignorada pelas rádios privadas de expressão nacional tão empenhadas que andam na disseminação do stress urbano-depressivo e com domínio quase completo do mercado, que os artistas não conseguem aceder a essas empresas com o à-vontade com que pretenderiam fazê-lo, que as rádios locais transmitem apenas música portuguesa (pimba, ceio eu) e que as casas editoras tratam os artistas como mera matéria-prima. Nesta sessão, os artistas e os editores constituíram-se em Plataforma querendo a definição de quotas mínimas de emissão de música portuguesa contra os dois grupos empresariais privados de rádios nacionais – que se odeiam entre si – e que dizem só quererem satisfazer o gosto dos respectivos ouvintes. Artistas e editores ignorando por completo as rádios locais e as rádios nacionais privadas a desprezarem-nas se não mesmo a ridicularizarem-nas. A rádio do Estado a entrar muda e a sair quase calada como garantia para não ser despedida.

Resumindo: as rádios de expressão nacional a quererem o liberalismo completo e a desregulamentação absoluta como forma de viverem a seu integral bel-prazer; os artistas a quererem a definição de quotas muito altas; os editores a não terem coragem de hostilizar a respectiva matéria-prima; as rádios locais a fazerem de verbo-de-encher a bancada da Sala do Senado; um ouvinte a fazer de parvo (eu); os Deputados a fazerem de Juízes Supremos.

É claro que esta iniciativa parlamentar resultou do lobby dos músicos junto dos cinco Partidos, os quais ficaram de tal modo convencidos da bondade da causa que produziram cinco Projectos-lei praticamente iguais não ficando mais matéria para acertar do que o nível das quotas mínimas de emissão de música portuguesa. Duvido que esta quase unanimidade de pontos de vista seja benéfica para a Democracia mas também julgo que a dimensão política do tema nos pode permitir excepções deste género. Ou seja, entre a definição das quotas de emissão de música portuguesa e as características do aço com que devem ser fabricados os “clipses”, parece-me que não há grandes diferenças de valor político. Com a diferença de que, sendo os “clipses” muito provavelmente fabricados em Espanha ou na China, o braço da nossa Assembleia não consegue lá chegar enquanto que às rádios nacionais lhes basta acenar com uma ameaça relativa aos alvarás.

Não posso deixar de referir que uma Senhora Deputada, no seu discurso de encerramento, assegurou a audiência de que vai ser criada a Instituição encarregue de fiscalizar o cumprimento das quotas que vão ser definidas, com fortes poderes e correspondentes meios financeiros para que a actuação seja efectiva. É para mim claro que o cumprimento da Lei deve ser vigiado – e eu concordo com o sentido da legislação em preparação – mas duvido seriamente que este caso mereça tal género de Instituição específica e que tal controle não seja enquadrável nas missões a desempenhar por uma qualquer Instituição pública já existente, com o Pessoal já ao serviço e com os meios financeiros actuais. Ficou para mim claro que há Deputados que ainda não perceberam o sufoco financeiro em que o Estado se encontra e se por acaso já perceberam, então devem estar-se nas tintas para o assunto.

Eis como os políticos meteram o testículo na virilha do cidadão mas como um pouco mais de metade dos eleitores não dispõe naturalmente dessa fisiologia, há que concluir que sacudiram a água do capote ou, pior ainda, que alijaram responsabilidades pois ficaram com a desculpa de que o povo foi ouvido e eles se limitaram a legislar em conformidade com a vontade popular.

E agora, venha música portuguesa, Maestro!

Lisboa, Julho de 2005

Henrique Salles da Fonseca

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