
Lá longe é a Machava...
Veio muito triste hoje, a Marta. Deram à família ordem de despejo e em troca da casita e do terreno que era deles, necessário, ao que parece, para a construção de uma escola, ofereceram-lhe outro terreno lá muito longe, na Machava, e mais cento e cinquenta escudos por conta do caniço.
O caso não se passava só com ela. A mesma ordem fora dada a uma série de famílias do bairro do caniço, obrigadas a agarrar nas trouxas e abalar.
A Marta vive com os pais e dois irmãos e como todos trabalham fora, excepto a mãe, conseguiram comprar um terreno distante ainda do aeroporto, mas em todo o caso num local mais próximo da cidade do que aquele para onde os queriam expatriar, absolutamente incompatível com os seus horários de trabalho e com a despesa (e escassez) de transporte que tão grande dist\ância implica.
Mas se a Marta pôde comprar o seu terreno, o mesmo se não dará com outros, certamente, menos abonados e que terão mesmo que partir para tão longe – mudar de terra, afinal.
Esta imposição pouco honesta, porque de modo algum compensadora, sugere-nos reflexão melancólica sobre o “bicho da terra vil e tão pequeno” que não só o destino mas o próprio homem, mais cruel do que aquele, se esmeram em reduzir ainda mais.
Para fazerem as suas casas, aqueles negros trabalharam, talvez, bastante, a fim de obterem a quantia que lho permitisse.
Não compreendemos como se pode, tão cavilosamente, despojá-los do que é seu, embarcando-os para longe sem sequer os indemnizar devidamente e sem se atender aos seus interesses e necessidades.
Obrigará o progresso a ser-se menos justo com os seus semelhantes? Concordamos que se torne necessário tal êxodo, necessidade que já vem nos livros, do Júlio Dinis pelo menos, onde o velho herbanário foi sacrificado no mesmo objectivo de desenvolvimento, já que era também o mais débil, quer economicamente, quer politicamente, ou socialmente.
Com o que não concordamos é com o logro, sobretudo quando os logrados são os tais seres inferiores que se não podem defender e nem sequer podem pagar ao advogado que os defenda, o que lhes sairia, evidentemente, bastante mais caro do que aquilo que perdem pela casa de que, friamente, os despojaram.
Berta Brás
In PROSAS ALEGRES E NÃO – Lourenço Marques, 1973