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A bem da Nação

LEITURAS DE VERÃO – 1

As leituras de Verão, à semelhança das das outras estações, dividem-se em longas e curtas. Neste Verão de 2005 muni-me da “Crítica da razão pura”, sim, a de Kant, de “ O último cabalista de Lisboa” do americano já quase português Richard Zimler e de algumas revistas das quais destaco o número 11 da “Oriente”, da respectiva Fundação e o número 5 da “Atlântico”, do Forum para a Competitividade.

Escusado será dizer que me faltam cultura clássica e conhecimentos filosóficos para comentar com interesse a obra de Kant; oxalá consiga eu absorver alguma ideia importante uma vez lido todo o livro . . . um dia que lá chegue. Neste início de leitura da edição da Gulbenkian, já me esforcei muito para digerir o prefácio do Professor Morujão mas prefiro ler de devagar perguntando aqui e ali o que significam certos conceitos do que ler de corrida e acabar o livro com aproveitamento semelhante ao da leitura da lista telefónica. Não prometo vir a comentar mas se o fizer é porque alguma das seguintes situações se verificou entretanto: ou ensandeci por completo e perdi a vergonha de escrever sobre assuntos que desconheço; ou tive tantas ajudas que o mérito interpretativo mais pertencerá a quem me ajudou; ou – muito improvavelmente – me doutorei em filosofia.

Sobre “O último cabalista de Lisboa” que estou a ler na praia, tenho desde já a dizer que gosto do estilo – que eu próprio tento nos meus livros – de levar o leitor a ficar sem saber onde acaba a realidade e começa a fantasia, tudo com base em factos históricos conhecidos e locais identificados. Desde que o leitor esteja prevenido para esse tipo de mistura fabulosa, creio que se trata de um modo interessante de divulgar e até interpretar a História sem se correr o risco de provocar polémicas para as quais nos faltam argumentos científicos. O mistério policial aguça o interesse imediato sobre um texto bem escrito (traduzido, neste caso) mas que dá uma perspectiva sociológica da época que raramente abordamos. A minha filha Maria – que já está a acabar de ler o livro – acha que a tradicional pequenez (eufemismo de mesquinhez) do raciocínio português se pode dever à metabolização generalizada da coscuvilhice da vida alheia com objectivos de denúncia à Inquisição não só para apaziguamento do clero dominicano e beneditino e do seu Deus castigador mas também para a eliminação física de credores e outros críticos dos incumprimentos mundanos. Eu sou capaz de admitir essa relação mas, assim sendo, falta-nos a explicação para a bem grandiosa atitude espanhola que foi ainda mais espezinhada pela Inquisição. Ainda tenho mais uma razão para justificar o que denunciamos: os portugueses grandiosos ou apenas sem paciência para aturarem o feudalismo ou outras formas mitigadas de senhorio emigraram deixando para trás os amorfos, pequenos, submissos, ignorantes, funcionários. Uns constituem a diáspora; os outros somos nós. Aqui deixo o tema à discussão.

O meu declarado fascínio pela Índia fez com que o meu amigo Martinho Pereira Coutinho me levasse à Fundação Oriente onde o Embaixador João de Deus Ramos nos recebeu com a elegância que o caracteriza oferecendo-me no final vários livros (que lerei brevemente e aqui trarei a seu tempo) bem como a mais recente edição da revista “Oriente”. Numa revista, não é suposto lermos tudo pois é natural que nos interessemos mais por umas coisas do que por outras. Às vezes, é uma questão de oportunidade e aquilo por que hoje passamos “à vol d’oiseau” pode bem ser motivo do maior interesse numa outra altura da vida. Hoje, o que me levou a uma leitura atenta teve a ver com o artigo da Inês Zupanov, Investigadora no Centre National de la Recherche Scientifique, Paris, intitulado “Curar o corpo, sarar a alma: a missão médica jesuíta na Índia do século XVI” e o artigo de Célia Antunes, Mestre em Antropologia pelo ISCTE, intitulado “Os timorenses em Portugal: motivações e objectivos”. Assim, da prática médica na Goa de 1500, retive que os jesuítas ordenados estavam proibidos de exercer medicina porquanto aos Padres cumpria salvar as almas não passando o materialismo corporal de uma preocupação desprezível. Contudo, quando surgiu um coadjutor temporal (jesuíta não ordenado) hábil na cirurgia, houve que o chumbar a latim como forma de o manter no exercício da prática médica. Para se filosofar há que estar vivo e, para o efeito, há que se munir de médicos. Na pureza da doutrina jesuíta, a doença resultava do pecado e da superstição passando a cura obrigatoriamente pela conversão; era um raciocínio de dentro (da alma) para fora (para o corpo). No sistema ayurvédico, hindu, seguido por Garcia de Horta, os males do corpo resultavam de desequilíbrios fortuitos (agudos) ou perenes (crónicos) e podiam ser curados ou atenuados pela adução de ajudas externas tais como preparados feitos a partir de plantas e minerais; era um sistema de fora (plantas, minerais, etc.) para dentro do corpo. Curiosamente, nenhuma das partes neste antagonismo se viu ilibada pela Inquisição. Já quanto ao estudo sobre Timor, creio que é sempre ingrato ser-se historiador presencial. A História de Timor ainda está nas primeiras páginas do nosso livro da Instrução Primária. Pela minha parte, vou deixar passar um pouco mais o tempo antes de começar a escrever; por enquanto leio e não formulo juízos.

A revista “Atlântico” nasceu já depois de eu, por aposentação, ter deixado de exercer funções no Forum para a Competitividade. Não tenho, portanto, quaisquer méritos na obra. Trata-se de uma revista com muito conteúdo – o inverso da leitura ligeira – e que aborda temas polémicos. Como disse há pouco, não leio tudo mas nesta edição (a 5) chamou-me a atenção o artigo escrito por Helena Matos, a Directora, intitulado “A China já despertou” em que retoma o argumento do aumento dos consumos chinês e indiano de petróleo para justificar as actuais cotações do barril, consideradas muito elevadas. Confesso que não sei se são muito ou pouco elevadas mas temo que o processo de subida não pare. Porquê? Porque acho que nisto tudo tanto a China como a Índia têm um papel perfeitamente marginal. A verdadeira questão, creio eu, está na manipulação dos preços por parte das petrolíferas nomeadamente americanas a fim de obterem os correspondentes aumentos de preços nos produtos transformados pela manutenção das margens relativas (e significativo aumento nas margens absolutas). Nisso são apoiadas pelas Autoridades respectivas, as americanas neste caso, que desse modo debitam mais Impostos indirectos sobre os produtos petrolíferos e directos sobre os maiores resultados obtidos pelas petrolíferas. Assim podem financiar mais confortavelmente a guerra no Iraque, cenário de guerra em que vêm sendo abandonados por vários aliados iniciais. Trata-se de um novo “ciclo combinado” em que se financia a guerra de defesa dos poços de petróleo com o dinheiro dos impostos arrecadados pela própria indústria petrolífera. Se até as contas de 2004 da PETROGAL revelaram resultados superiores ao inicialmente estimado, o que não sucederá com a TEXACO, CHEVRON, etc. Os Governos agradecem . . . ou dão mesmo uma mãozinha na manipulação jornalística dos mercados. Em Portugal, o sorvedouro público agradece.

A crónica das leituras segue no próximo episódio.

Tavira, Agosto de 2005

Henrique Salles da Fonseca

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