PELA ROTA DA ÍNDIA – III
Ao longo dos 47 anos que mediaram entre 1961[1] e 2008, os lusófonos goeses não se esqueceram de Portugal apesar de terem estado literalmente abandonados à sua sorte entre Dezembro de 1961 e Abril de 1974;estiveram efectivamente abandonados até à abertura do Consulado Geral de Portugal em Goa;deixaram a quase clandestinidade em que se sentiam quando o Consulado Geral foi inaugurado em Abril de 1994; viveram intensamente todas as vicissitudes por que o processo de normalização das relações bilaterais entre a Índia e Portugal foi passando e entenderam esse percurso enquanto parte integrante de uma catarse de aproximação, pacífica convivência e eficaz cooperação face aos desafios comuns que enfrentam as culturas portuguesa e indiana; continuam actualmente a sentir a pressão que os nacionalistas radicais indianos exercem contra eles mas já consideram possível viver livremente sem mais necessidade de se barricarem; têm os antigos territórios portugueses na Índia como partes inquestionáveis da União Indiana e recusam qualquer espécie de neo-colonialismo; apenas pretendem falar livremente a nossa língua, a de todos nós, universal e veículo de um pensamento próprio; pretendem ensiná-la livremente e alargar o seu âmbito àqueles que a reconhecem como língua obrigatória rumo ao futuro global, urbi et orbi; querem sentir-se em plena legalidade, o que confere à língua o seu próprio espaço e que dignifica também todas as outras posturas oficiais, maioritárias ou de expressão menos intensa; apesar de todas as contrariedades, não deixaram morrer a língua portuguesa porque a falavam quase às escondidas em casa e isso apesar de logo no início de 1962 a Igreja da sua devoção se ter passado para a língua inglesa.
Porta dos Vice-reis - Velha Goa
E foi pelo ano de 1997 que, contra ventos e marés, a Sociedade da Amizade Indo-Portuguesa iniciou cursos de língua portuguesa para adultos. Mesmo antes de se saber qual o programa curricular, logo apareceram interessados em retomar contacto formal com a língua que assim abandonava as trincheiras em que se escondera durante tantos anos. Mas também aqueles membros de casamentos mistos que queriam passar a entender a língua da família do consorte, os Advogados que queriam passar a aceder directamente aos Códigos legais por que ainda hoje o Direito se rege em Goa abandonando as traduções nem sempre fiáveis, os que acalentavam a ideia de adquirirem a nacionalidade portuguesa e daí um passaporte que lhes desse acesso ao Espaço Schengen, enfim, os jovens em paz com a História do seu Estado que lhe queriam sentir a alma escondida pelos políticos.
Decorridos 10 cursos, a média de conclusões por curso elevou-se ao fantástico número de 92 e o 11º abriu em finais de 2008 com 120 inscrições.
Estes cursos compõem-se de quatro graus sendo o primeiro destinado a quem se inicia e o quarto aos alunos mais avançados. Decorrem em Panjim e Margão durante um ano lectivo (cerca de 9 meses a 3 horas semanais) em horário post-laboral e são ministrados por Professores recrutados em Portugal.
Também com Professores recrutados em Portugal, os cursos de conversação destinam-se aos alunos que concluíram o 4º grau dos cursos de língua portuguesa e foram imaginados para um máximo de 15 participantes. O primeiro curso deste género decorreu no segundo trimestre de 2007 e teve que ser desdobrado em dois grupos de 15 alunos (um dos grupos a funcionar em Panjim e o outro em Margão) para melhor corresponder à procura. Com a duração de três meses ao ritmo de três sessões semanais, mostrou ser um complemento da maior valia para a obtenção de vocabulário e fluência. O segundo curso de conversação decorreu no primeiro trimestre de 2009 com 30 alunos repartidos em duas turmas, à semelhança do curso anterior.
Daqui resulta que da perseverança destes «portugueses abandonados», verdadeiros heróis da lusofonia, em Goa já não são só os mais idosos que falam português e a nossa língua deixou de ser um tabu. A tal ponto que – após décadas de temor – na Universidade de Goa abriu recentemente a Delegação do Instituto Camões na função que lhe é peculiar de formação de formadores.
Chegou, portanto, a hora de servir todos os escalões etários e de alargar o ensino da língua portuguesa a outras localidades do Estado de Goa.
Eis porque vai brevemente ser inaugurada aEscola da Amizade Indo-Portuguesa destinada a crianças com 7 anos de idade que já frequentem o ensino indiano de língua inglesa.
Funcionando por anos lectivos de 9 meses ao ritmo de três aulas semanais de uma hora, terá quatro graus à semelhança dos cursos já ministrados aos adultos mas acrescerão à língua portuguesa as matérias relativas à História e Geografia.
Com sede em Panjim na Sociedade da Amizade Indo-Portuguesa, pretende-se que sucessivamente abra delegações em Margão, Mapusa, Vasco da Gama e Pondá. Os professores serão recrutados localmente mas haverá um coordenador pedagógico oriundo de Portugal.
Se houver crianças goesas a comunicar entre si em português, então será possível encarar o futuro da nossa língua naquele Estado indiano com verdadeira esperança.
Quinhentos anos de Cultura Portuguesa na Costa do Malabar justificam os nossos esforços e acalentam os nossos sonhos no sentido de que da tolerância frutifiquem claros benefícios sobretudo para os residentes locais. Esforços e sonhos maioritariamente privados que passam ao largo de especial empenhamento público.
“O sonho comanda a vida”[2] e nós sonhamos com que de tão forte interculturalidade histórica resulte um modelo específico de desenvolvimento único em toda a União Indiana e que a língua portuguesa se revele um instrumento eficaz de aproximação da Índia ao espaço lusófono.
Mas a Índia não se esgota em Goa e haverá que multiplicar as iniciativas em Damão e em Diu para não falar ainda de Bombaim, Chaúl e Cochim onde também permanecem traços humanos da secular presença portuguesa.
Também o Oriente não se esgota na Índia e por isso não nos podemos esquecer dos lusófonos de Larantuca (nas Molucas, hoje território indonésio), dos de Malaca e dos de Baticaloa (no actualmente belicoso Sri Lanka[3]). A todos eles devemos acorrer antes que morram no desespero de mais séculos de espera.
Hoje, felizmente, o vizinho não nos induz a presença da famigerada Inquisição que pela mão dominicana também a partir de Goa semeou o ódio inter-religioso[4]. Assim, estamos em boas condições para seguir o exemplo que Afonso de Albuquerque há quase quinhentos anos nos ensinou de que a convivência se cultiva e a Fé não se discute.
A bem da paz e da concórdia, as que faltam.
Eis o que me move em relação aos luso-descendentes na rota da Índia e para além da Taprobana; falta imaginar o que deveremos fazer pelos luso-ascendentes no azimute do Cabo Finisterra.
Sim, porque «o sonho comanda a vida»[5].
Lisboa, Novembro de 2008
(in Boletim de 2009 da Academia Galega de Língua Portuguesa – pág. 123 e seg.)
BIBLIOGRAFIA:
· Boxer, Charles R. – “O IMPÉRIO MARÍTIMO PORTUGUÊS 1415-1825”, Edições 70, Lisboa, Setembro de 2001
· Vasconcellos e Menezes, José de (Médico, Capitão-de-mar-e-guerra) – “ARMADAS PORTUGUESAS – apoio sanitário na época dos Descobrimentos”, Academia de Marinha, Lisboa, 1987
[1]- A invasão de Goa, Damão e Diu pelas Forças Armadas Indianas ocorreu no dia 18 de Dezembro de 1961
[2] - Pedra filosofal, António Gedeão
[3] - Onde já identifiquei o porta-voz dos «portugueses» de Baticaloa, o Senhor Sonny Ockersz, com quem tenho mantido contactos preparatórios de algo que ainda não nasceu.
[4] - Francisco Xavier SJ, nascido no Castelo de Xavier, Navarra, missionário no Oriente, pediu ao rei D. João III que enviasse a Inquisição para Goa. O rei acedeu (como já acedera ao pedido dos reis espanhóis para a introduzir em Portugal). O missionário morreu na China, foi sucessivamente trasladado para Malaca e para Goa; cognominado o Apóstolo do Oriente, foi canonizado e ficou na História conhecido por São Francisco Xavier.
[5] - Pedra filosofal, António Gedeão