OS PÉS DO BEZERRO DE OURO
É frequente atribuir-se a causa da crise financeira à queda do muro de Berlim. Frei Bento Domingos, na sua crónica domingueira no PUBLICO[1], fez-se eco dessa interpretação. O colapso do comunismo teria tranquilizado os ricos e estes passaram a adorar o “bezerro de ouro” sem mais se preocuparem com a condição dos pobres. Este descaso seria os “pés de barro” do dito bezerro que, quando se torna objecto de adoração, baqueia, arrastando os seus adoradores para a ruína.
Explicar factos mediante recurso aos antecedentes tem lógica mas devemos ter o cuidado de evitar confundir anteriores com antecedentes e subsequentes com consequentes. No caso, o muro de Berlim talvez tenha sido mais vítima do que causa. Há indícios fortes de que a indiferença pelos fracos já estava instalada antes do colapso do comunismo. Recorramos à evolução teórica e à inovação tecnológica.
Se acompanharmos a evolução do pensamento académico americano – sempre propenso a teorizar o conveniente – vemos que a visão holística começou ali a perder curso na década de 60. Admitiu-se que a razão divide mais do que une. A esperança (e vontade) de estabelecer uma ordem universal racional perdeu elã e assim continuou até se esmaecer no horizonte. Nos anos de 70, a academia na sua grande generalidade, declarou o mundo irremediavelmente anárquico ainda que não caótico e isto porque obedece a uma lei – a da força. O ser humano não consegue libertar-se de condicionalismos específicos determinados por condicionalismos locais de natureza tanto cultural como genética. Formas universais de lei e moralidade estariam além das possibilidades do homem e para lá do horizonte de História. Seria preciso pois aceitar, tolerar e até celebrar a diversidade. A realidade do mundo seria a pluralidade e coexistência de particularismos (corporativistas, regionalistas, religiosos, etc.) hierarquizados pela relação das respectivas forças. A hierarquia seria mil vezes preferível à razão como meio de gerar o consenso porque este não resultaria da razão mas meramente da aceitação. Chamou-se a isto tudo o pós-modernismo, termo já de si aberrante pois se o moderno é o que está, o “pós” só poderia significar algo que anuncia o que já está. Na realidade, o pós-modernismo dos anos 70 fez um exercício crítico em termos não-modernistas do estabelecido em todos os ramos do conhecimento. Daniell Bell[2] foi um dos seus expoentes no que toca à Economia.
No sector económico, a desregularização passou a ser vista como a via da salvação e o normativismo a da danação. Para os economistas, são válidas apenas as normas produto de negociação racional entre iguais ou quase iguais. Os grupos entregues a si mesmos encontrariam maneira de sobreviver e prosperar, organizando-se espontaneamente sem recurso a autoridades constituídas. Toda a intervenção no mercado reduziria a vitalidade da economia. Elegia-se pois a competição como prática salutar e, para evitar que os fortes dominassem os fracos, recomendava-se o corporativismo.
O movimento acelerou nos anos 80, provocando efeitos importantes tais como o Tatcherismo, o alargamento da União Europeia (em contracorrente) e a substituição de Marx pelo “gato descolorido” na economia chinesa. Por fim, caiu o muro.
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Os que elegem a inovação tecnológica como motor da história económica consideram despiciendo todo o esforço de teorização supra mencionado e dizem que o crescimento das economias a partir da década de 50 resultou pura e simplesmente da descoberta do microchip, em 1947. A inovação multiplicou exponencialmente a força das grandes empresas e estas decidiram, como os portugueses do século XV, que o Mundo é o meu lugar e a lei sou eu quem a dita. É preciso não esquecer porém que Gordon Moore, patriarca da Silicon Valley e fundador da INTEL, tinha por máxima duplicar todos os anos o número de componentes do cada chip por forma a reduzir o seu custo, permitindo a multiplicação das aplicações e tornar o produto acessível aos consumidores menos abonados.
Os efeitos multiplicadores da descoberta teriam atingido a saturação em 1990 e, na falta de crescimento real, o capital orientou-se para a especulação. A crise seguiu-se.
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Uma tese não exclui a outra. É perfeitamente admissível que os microchips tenham aberto a via da globalização e o que se passou na Universidade mais não seja que mero reflexo. Já porém parece difícil admitir que a revolução iniciada pela inovação se tenha esgotado há vinte anos. Parece contudo correcto admitir que o capital exulta num ambiente cosmopolita desregularizado enquanto os sindicatos estiolam fora do quadro nacional. Reduzidas as antigas barreiras fronteiriças, os sindicatos entram em briga com os seus congéneres de outras nacionalidades e enfraquecem-se reciprocamente.
Haja em vistas o que se está a passar com a indústria automóvel. Perante evidência de super capacidade instalada, a Magna – grupo capitalista australiano/canadiano – que se apoderou da Opel, anunciou o seu propósito de despedir 10.500 operários nas fábricas europeias. A ninguém ocorreu que a saturação do mercado se deu ao nível dos carros tecnologicamente evoluídos enquanto milhões de consumidores potenciais nos mercados subdesenvolvidos não dispõe de modelos ao seu alcance. Ideias dessas ocorreriam a Henry Ford I, mas esse era “ante-pós” modernista.
Perante o anúncio da Magna, os sindicatos nacionais entraram imediatamente em luta entre si e exigiram dos respectivos governos nacionais que transferissem para o contribuinte nacional o ónus do subsídio a fornecer à Magna para reduzir o número das vítimas nacionais dos anunciados despedimentos. No seguimento, o governo alemão disponibilizou €4,5 mil milhões para salvar o emprego na Alemanha e o britânico remexe os bolsos a ver se encontra uns cobres para entrar na corrida. A Magna acabará por ficar dona das fábricas com pequeno (ou nulo) investimento próprio; estas ficarão instaladas onde menos interessa do ponto de vista empresarial e continuarão a fabricar carros de luxo para mercados saturados. Entretanto, a Renault decidiu fechar a fábrica na Bélgica e mantém em França onde recebe subsídio. Dentro do mesmo critério, a Peugeot vai fechar Cádis e a VW encerra todas as fábricas menos na Alemanha e Portugal (a mão de obra portuguesa é a que menos cobra). A instalação da fábrica segue pois o subsídio ou a capacidade de sacrifício dos trabalhadores e não a lógica do mercado. Em termos de gestão fica tudo errado, mas a liberdade da iniciativa privada e o corporativismo subsistem.
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Diria pois que a crise financeira foi fundamentalmente originada por dois factores degenerativos, ambos filhos da globalização/desregularização: - (1) o desequilíbrio de forças entre a grande empresa e os sindicatos e (2) o corporativismo que se tornou extensivo aos administradores executivos das grandes empresas. Ultrapassando a lógica da concorrência, cada um passou a cuidar de si.
A avaliar pelo que a imprensa divulga, o quadro patológico mantém-se intacto. Cuidado, pois, meus Senhores.
Estoril, 15 de Outubro de 2009
Luís Soares de Oliveira