O FALSO DILEMA
Isto passou-se há mais de 50 anos em Nova York. Estava eu então impressionado (pessimamente) com a enormidade dos estragos, incómodos e até violência causados por uma greve nacional dos teamsters – motoristas de caminhão – quando, numa troca de impressões com um empresário (média empresa), lhe ouvi o seguinte comentário aos acontecimentos: “É o preço que temos que pagar pelo progresso. As greves têm contribuído para elevar o nível de salários e este, por seu turno, alargou o mercado interno para as indústrias. Estragar para melhorar poderá parecer um processo absurdo, mas funciona”.
A verdade é que depois de ouvir a observação do meu interlocutor self-made man, alterei gradualmente a minha perspectiva sobre a questão social. Onde eu via um conflito irredutível passei a ver uma fonte de sinergias virtuosas. Adquiri uma certeza: embora o diagnóstico de Karl Marx estivesse correcto, o seu prognóstico era falacioso. A luta de classes existia mas não era preciso acabar com ela mediante eliminação de um dos antagonistas. Em 1989, em Berlim, tivemos a confirmação: suprimida uma classe e acabado o conflito, a sociedade comunista entrou em entropia e apagou-se. A ideologia “eterna” faleceu ali e então.
Já nos anos 90, quando estudei o fenómeno do desenvolvimento económico sul-coreano, constatei que os preconizadores do modelo tiveram o cuidado de provocar artificialmente uma luta de classes. Foi criada uma classe capitalista, arrebanhando os especuladores que tinham conseguido fazer fortuna durante a Guerra de 1950. Exigiu-se-lhes que criassem as indústrias constantes do programa oficial. Se o não fizessem, os seus bens ser-lhes-iam confiscados ao abrigo de uma lei do enriquecimento ilícito então promulgada. As greves e outros processos de luta pacíficos - ainda que por vezes violentos - foram consentidos; tais actividades não podiam contudo colidir ou reduzir o horário laboral (48 horas por semana). E assim, em 30 anos, a Coreia do Sul passou de um dos países mais pobres do mundo para um dos 10 países com mais elevado rendimento per capita.
Diria pois que até hoje, o dilema capital-trabalho foi um falso dilema. Os dois factores completaram-se e funcionaram como êmbolos alternados da mesma máquina: um empurrou, o outro puxou. Aliás já o Romanos da República tinham chegado a conclusão semelhante: duas vezes (471 e 419 a.C.,) a plebe encaminhou-se para as montanhas com o intuito de se eximir ao domínio opressor dos patrícios; duas vezes os patrícios lhe concederam regalias na condição de voltarem e duas vezes a plebe regressou a Roma. E a República durou mais 4 séculos.
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O ciclo virtuoso dá porém sinais de esgotamento. O grau de automatização e informatização atingido nos últimos anos dificulta, senão mesmo invalida, a conjugação dos opostos. A sede de lucro do burguês capitalista impõe hoje ao capital aplicações que já não servem para criar emprego e multiplicar as oportunidades de progressão oferecidas ao trabalhador. A economia pede cada vez menos mister e cada vez mais conhecimento. A empresa aproxima-se da universidade e afasta-se da escola industrial.
A isto tudo acresce o problema do ambiente. Poderemos continuar a produzir e consumir a este ritmo alucinante? Ao que dizem os entendidos, a resposta é negativa. Os frutos do sistema tornam-se pois menos acessíveis a crescente número de pessoas. Entramos assim no ciclo da exclusão.
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O “Clube de Roma” já tinha profetizado que, como resultado do desenvolvimento tecnológico acelerado, o mundo se tornaria caótico e assistiríamos a grandes perturbações de cunho político, económico e ambiental.
O que fazer em tais circunstâncias? Desconfio que, de momento, ninguém tem respostas. Uma coisa contudo é certa: as soluções de ontem não servem. Vamos ter que tactear prudentemente em busca de novas saídas.
Estoril, 22 de Setembro de 2009