Moralidade de “fábula”
Quando as coisas nos correm de vento em popa, geralmente com escândalo social, atribuímo-lo à nossa cabeça, ao nosso cérebro escorreito, que nos tornou donos do mundo. Quando os reveses – que os há sempre – dão um piparote no nosso êxito, jamais atribuímos à nossa cabeça a razão do destroço, mas antes à Sorte, ao Destino, à clássica Fortuna.
É o que comenta La Fontaine na sua fábula “A ingratidão e a injustiça dos homens para com a Fortuna”, a respeito de um traficante marítimo que tanto enriqueceu, que os seus dias de jejum, cumpridos devotamente, eram autênticos banquetes.
Gabava-se ele do seu “savoir faire” e do seu talento, a correr riscos e a colocar os seus dinheiros, não ainda nos offshores da nossa modernidade, mas noutros paraísos seria, de igual modo frutuosos, além da sua devoção.
No entanto, as coisas mudaram, os ventos foram-lhe contrários, empobreceu. E não é que desatou logo a incriminar a Fortuna, ou Sorte, ou Destino, Sina, Acaso, de tal despautério? Jamais culpou a sua cabeça, dantes tão talentosa. E La Fontaine conclui: “Le bien, nous le faisons; le mal, c’est la Fortune; / On a toujours raison, le destin toujours tort.”
Veio-me isto à ideia a propósito do que por aí vai de ventos propícios a tantos, que eles não deixarão de atribuir à argúcia dos seus cérebros e do seu “savoir-faire” os êxitos das suas vidas de traficantes terrestres, ingratos para com a Fortuna e mesmo com o “tronco nobre de seus antecessores”, tantas vezes na origem deles, como já Camões explicava. São, realmente, sempre os seus direitos, as suas cabeças, as suas capacidades, os responsáveis e, neste ponto, dou-lhes inteira razão.
Não, não devem nada à Fortuna, tenho a certeza. Quando muito ao nosso “status” reconhecido de hibernação da Justiça, neste espaço em que se movem. Têm, realmente, uma excelente cabeça. E acho que não passa de fábula a moral da história do traficante marítimo, de ingratidão para com a Fortuna, na sua fortuna, de injustiça para com a mesma, na sua adversidade, segundo La Fontaine.
Acredito, realmente, na inteligência dos traficantes com êxito, sejam marítimos, terrestres ou aéreos. E se, por acaso o perdem, deve-se isso não aos reveses da Fortuna, mas antes à inteligência de outros traficantes, dos mesmos espaços.
«Penso eu de que.» Mas sinto inveja.
Berta Brás