O livro de Witney Schneidman, “Confronto em África”, editado em português pela Tribuna, 2005 - de que só agora tomei conhecimento –, constitui excelente exemplo de objectividade e exactidão (quase [1]) em matéria de relato histórico. Diria mesmo que no que toca ao braço-de-ferro luso-americano suscitado por John Kennedy e continuado posteriormente por diversos grupos americanos constitui a melhor peça de toda a abundante literatura produzida sobre o assunto. A luta entre Kennedy, Presidente da nação mais poderosa do mundo, e Salazar, chefe de um governo falho de força militar moderna visível, está magistralmente descrita e mostra como o pequeno David soube usar a sua “funda” diplomática para "cegar" o gigante Golias e frustrá-lo nos seus intentos.
Schneidman fez parte da direcção do State Department durante a administração Clinton e posteriormente especializou-se em assuntos africanos. Além de um doutoramento nos EUA, tem um mestrado na Universidade de Dar-es-Salaam. Reúne pois fortes credenciais para se ocupar destas matérias. Eu sinto-me em boa posição para poder avaliar da veracidade do relato e da lucidez da conclusão pois testemunhei os principais factos registados pelo autor. Estava como observador no Conselho de Segurança das NU quando o delegado da Libéria propôs – com geral surpresa – uma reunião do dito Conselho para se ocupar da situação em Angola [Fevereiro 1961]. Até aí, pensava-se que em Angola estava tudo sossegado. [Na realidade, tinha havido um ataque às prisões em Luanda mas a notícia de tal feito não chegara Nova York.] O pedido da reunião foi pois o toque da trombeta anunciador do início das hostilidades no terreno e de tudo o mais que aconteceu dentro e fora do território. Pouco depois, fui eu transferido para Washington que Kennedy transformara em quartel-general das cruzadas em que se empenhou contra Salazar, Fidel Castro e Ho Chi Minh. Posteriormente fui nomeado chefe da repartição política África-Ásia (ao tempo designada por Negócios Políticos Ultramarinos) onde continuei a acompanhar até 1965 a luta diplomática suscitada pelo Império Português.
Como Schneidman regista, as campanhas em que Kennedy se empenhou foram-lhe funestas. Os sucessores de Kennedy afastariam a questão portuguesa da Casa Branca e Nixon – que se rendeu a Ho Chi Minh – acabaria por apoiar a posição portuguesa em África.
O relato de Schneidman sobre a evolução da situação no terreno já não me parece tão exacto como a sua narração do processo diplomático. O autor fala de grande actividade militar em Angola nos anos 1972 /73, enquanto eu, que viajei intensamente por toda Angola nesse tempo, não notei ali o menor sinal de agitação. Actividade militar havia em Moçambique e na Guiné. Diria contudo que o autor está certo quando aponta a chegada à Guiné do míssil russo Sam 07 como o facto que tornou irreversível a vitória final dos movimentos nacionalistas africanos. A tecnologia não cede o seu lugar.
Havia muito a referir sobre tudo isto; entendo porém que não nos devemos enfronhar demasiado nas brumas do passado. Daí não vem grande benefício. O passado não explica o presente. Quem diria que este nosso presente seria o futuro daquele passado? De tudo o que aconteceu eu guardo o sentimento gratificante de que, numa determinada altura, a minha vida se cruzou com o destino histórico do meu país e isso conferiu-lhe transcendência. Se foi uma hora gloriosa ou uma hora triste é secundário. O que ficará para a história é a forma como se viveu o momento e não me resta dúvida que, sob a batuta de Salazar, o fizemos com dignidade.
Morrer sim, mas devagar.
Estoril, 25 de Julho 2007
Luís Soares de Oliveira
1] As pequenas falhas que notei na parte diplomática não têm consequência de maior. Garin não era o embaixador em Washington em 1961 (p. 59). O convite para encontrar os estudantes angolanos na Universidade de Lincoln foi dirigido a Teotónio Pereira e este embora não tenha comparecido pessoalmente enviou-me a mim – ao tempo 1º Secretário da Embaixada – para o representar. A Universidade convidou o Rev. Mac Veigh, ex-missionário em Angola e realizou-se uma sessão de apresentações e debate da situação angolana perante os corpos docente e discente da Universidade. Nunca me esquecerei de tal experiência. Acabou bem. No final, no Campus, os estudantes angolanos rodearam-me e, entre outras coisas, queriam saber se o Benfica tinha ganho a Taça dos Campeões europeus. “Ganhou”, disse-lhes eu e a notícia produziu vibrante manifestação de regozijo. O corpo discente da Universidade olhou-nos com espanto e indisfarçáveis sinais de receio. A conversa decorria em português e os doutos professores não sabiam do que falávamos.
2 comentários
Adriano Lima 28.07.2009 22:11
Li com muito agrado esta peça, que nos incita a ler a obra a que se refere. Os que, levianamente, procuram ridicularizar Salazar, considerando-o um provinciano e um político de trazer por casa, nem com o ruído que produzem conseguem abafar a verdade sobre a sua verdadeira estatura política. O meu sentimento é o mesmo do Senhor Embaixador. Concordante ou não com a política do Estado Novo, a verdade é que havia um espírito de missão nacional que nos impelia. Eu não estava em Angola em 1972 e 1973, mas sim em Moçambique, mas sei que Angola estava mais ou menos pacificada naqueles anos, em parte devido à crise interna que o MPLA então atravessava. E de tal maneira que o 25 de Abril lhe foi providencial.