HERÓIS DE CÁ - 24
HEDONE E A FÉNIX

A História não pode ser distorcida ou branqueada, deve ser escrita com verdade e interpretada com pudor.
Se em Portugal o processo político seguiria a partir de 1976 por vias pacíficas, já o mesmo se não poderia vir a dizer de Angola, Moçambique, Timor e Guiné-Bissau onde grassaram flagelos humanos de clamorosa dimensão. Apareça alguém a citar a «descolonização exemplar» e terá por certo os descendentes de milhares de mortos a desmenti-lo.
Quanto a nós, sem armas, não se tratava de lamber as feridas deixadas pela peleja calada em Novembro de 1975: era a ocasião de definirmos um modelo de sobrevivência que assegurasse a soberania nacional tomando como base uma dimensão territorial pouco maior do que aquela que tínhamos em 1415. E se não podíamos contar com as riquezas naturais espalhadas pelo Império que deixáramos de gerir, o que fazer?
Em terminologia moderna, a resposta é: não podendo contar com o hardware, haveria que cuidar do software. Mais prosaicamente: tinham-se ido os anéis, tratássemos dos dedos.
Das riquezas naturais restava o amealhado por uma política mercantilista e relacionamento financeiro com o exterior controlado em exclusivo pelo Banco de Portugal[1] em cujas caves se acumularam centenas de toneladas de ouro[2]. Eis a «pesada herança» que alguns abutres se apressariam a tentar desbaratar.
Nas riquezas humanas prevalecia uma grande desorientação. A começar pelos desalojados[3] do Império que num ápice se viram esbulhados de tudo o que haviam amealhado ao longo de vidas de trabalho na construção de “novos Brasís” passando pelos que cá estávamos ainda meio atordoados com as zaragatas por que acabáramos de passar e até àqueles que tudo haviam perdido na Reforma Agrária e nas demais nacionalizações, intervenções, saneamentos e aposentações compulsivas.
Portugal estava em cinzas físicas e morais. Tornava-se imperioso e urgente remotivar a Nação.
Perfiladas as várias hipóteses com respaldo internacional desde o comunismo[4] à democracia-cristã passando pelo socialismo e pela social-democracia, todos se apresentaram com as soluções típicas das respectivas orientações doutrinárias. Já tínhamos optado por um regime parlamentarista (apesar de apregoado como semi-presidencialista), faltava agora definir um modelo que assegurasse a soberania nacional.
As alternativas que se perfilaram à escolha dos eleitores não deram muitas hipóteses de escolha pois os comunistas apregoavam algo ao estilo salazarista do «orgulhosamente sós» enquanto não pudessem voltar a impor a tenaz, a hipótese atlantista padecia então de clara precocidade uma vez que os PALOP’s ainda não estavam em condições de rejeitar a esfera soviética e todos os demais Partidos (PS, PPD e CDS) preconizavam uma aproximação à CEE – Comunidade Económica Europeia.
Mesmo os euro-cépticos (eu, por exemplo) optámos pela aproximação à CEE pois isso significava que seríamos uma democracia parlamentar e que não cairíamos nas mãos da URSS.
E como os principais oradores diziam o mesmo, ganharia quem mais gritasse e mais prometesse. Em resumo, todos diziam que nós (os eleitores) tínhamos todos os direitos, tínhamos direito a tudo e JÁ!

Hedonismo primário, o mais prometido
Há quem lhe chame cultura post-moderna e outros eufemismos do género. Eu sou adepto da frontalidade e chamo-lhe demagogia e hedonismo, dupla dançante que ganhou as luzes da ribalta portuguesa e que sistematicamente cortava as asas à Fénix.
Para já, contávamos com promessas e cinzas...
Julho de 2009
[1] - A que reportavam os outros dois emissores, o Banco de Angola e o Banco Nacional Ultramarino.
[2] - Essa riqueza não tinha só origem na exportação de bens mas também de serviços. Por exemplo, na remuneração do trabalho dos magaíças: a África do Sul pagava em ouro a Portugal o equivalente ao trabalho dos moçambicanos nas minas daquele país; os trabalhadores eram parcialmente pagos em Rands (argent de poche de que viviam enquanto emigrados) e complementarmente em Escudos moçambicanos emitidos pelo BNU (as verdadeiras poupanças com que se estabeleciam «no regresso a casa»).
[3] - Errada e quase pejorativamente apelidados de «retornados».
[4] - No rescaldo do 25 de Novembro de 1975 Melo Antunes, moderado Conselheiro da Revolução, «pedira» em entrevista na RTP que não baníssemos o PCP do teatro político. Na altura a ideia foi recebida com alguma estupefacção mas hoje sabemos que Melo Antunes teve razão: se o PCP tivesse regressado à clandestinidade, não ostentaria hoje a caducidade que evidencia.