Crónica de uma cidade
Lá pelos anos de mil e setecentos era comum às famílias nobres colocarem as filhas solteiras, sem perspectivas de casamento ou de receberem herança, em conventos.
Conhecido e registado por Marcelino Lima foi o caso escandaloso de duas freiras sem vocação, Mariana Labat e Rosa Lima de Melo, na cidade da Horta.
Como tantas outras jovens colocadas na clausura, sem direito à escolha e sob a força coercitiva paterna, essas duas noviças dividiam a cela e a triste vida conventual. Restava-lhes o consolo dos Dias de Grade, dias em que a madre abadessa abria as portas do Convento da Glória para receber os seculares. Eram minutos de agradável convívio familiar onde se colocava os assuntos mundanos em dia, sempre acompanhados de guloseimas e chás aromáticos servidos em rica porcelana da Índia. Dessas reuniões também participava gente de “ boa roda” para tertúlias e exibições de algumas actividades intelectuais, como declamação de versos e leituras. Às vezes entre as noviças e visitantes surgiam risinhos abafados, troca de olhares profundos subentendendo relacionamentos mais íntimos. De mão em mão, através das grades, o rapé era oferecido às freiras em caixinhas de madrepérola, ricamente ornamentadas. Daqueles encontros quantos amores não brotaram, quantos pecados assumidos sob os olhares coniventes dos santos! Alguns suplantaram até a barreira das grades.
Foi num Verão de bom tempo e águas calmas que chegou ao porto da Horta uma corveta da marinha inglesa. Em terra, seu comandante procurou no convento momentos de conversas mais amenas e de contactos com pessoas de fino trato. Suas visitas tornaram-se mais frequentes do que se esperava. Parecia não ter pressa de zarpar, de ir embora. Prendia-o os olhos brilhantes da jovem Rosa. Apaixonaram-se. Recados passavam disfarçadamente em pregas de guardanapos dobrados, através das barras de ferro. Planejaram a fuga, queriam ficar juntos para sempre. À noite na cela as freirinhas faziam confidências, escapariam juntas para a Inglaterra. Rosa para os braços do inglês, Mariana para a liberdade.
Na noite marcada, uma janela do convento estava tibiamente iluminada. As barras afastadas, lençóis amarrados, a trouxa de roupa feita, as irmãs de infortúnio, ansiosas, aguardavam. Não demorou muito e, de uma forma velada, o esperado chamado se fez ouvir:
- Are you ready?
- Yes, veio a resposta ligeira. E, sem titubear, sem receio, Rosa lançou-se no vazio. Lá embaixo esperava-a o amado, nas sombras da rua estreita. Já Mariana não tinha tanta certeza do que fazia, tinha medo do que lhe aguardava no estrangeiro. Demorou-se tanto para se decidir que os marujos, o comandante e Rosa se cansaram e se afastaram a passos rápidos e cautelosos em direção ao areal onde um bote os aguardava para leva-los ao navio.
Sem saber que os comparsas já haviam partido, Mariana, com receio, desceu lentamente pela corda improvisada. Quando encontrou o chão, não havia mais ninguém a espera-la. Em desespero correu para o local combinado. Em vão. Todos já estavam no mar, não havia viva alma na praia. Chorou. Sentiu-se perdida, abandonada. Vagueava pela beira da água quando foi reconhecida e acolhida por uma alma caridosa que a abrigou até o dia seguinte, quando voltou para o Convento.
Durante muito tempo a cidade comentou o escândalo da fuga das freirinhas do Convento da Glória. Rosa Lima de Melo fugiu com o capitão do navio e nunca mais voltou. Mariana Labat foi perdoada pela Igreja e readmitida na Ordem. Seu caso caiu no esquecimento com o tempo. Viveu atrás das grades boa parte da sua vida, mas morreu fora delas, bem velhinha, senil, quando da extinção das Ordens religiosas em Portugal.
Adaptação de uma crónica de Marcelino Lima sobre a vida de Mariana Labat ( Famílias Faialenses)
Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 17/06/09