BURRICADAS 59
dinheiro, esse desconhecido - II
v Há boas razões para que a verdadeira dimensão da crise tenha apanhado tudo e todos de surpresa:
- Ninguém se tinha apercebido de que uma fatia cada vez maior das responsabilidades entre Bancos (os CDS, por exemplo) não passava pelo sistema interbancário - e, por consequência, não estava registada nos livros dos Bancos Centrais;
- O volume dos créditos recíprocos entre Bancos era, por isso, muito superior àquele que os Bancos Centrais imaginavam;
- Essa teia de créditos cruzados saltava fronteiras – e isso também não aparecia nos livros de nenhum Banco Central;
- Mas, acima de tudo, os Bancos em melhor estado, com as barbas chamuscadas, começaram a levar muito a sério os preceitos do Basileia II, tornaram-se hipersensíveis ao risco e preocuparam-se em preservar a todo o custo as suas bases de capital.
v Na realidade, o Basileia II veio fixar uma relação estreita entre Capitais Próprios e risco. Hoje, os Bancos estão obrigados: (1) a divulgar regularmente os riscos a que se encontrem expostos e as perdas que esperam sofrer em consequência desses riscos; (2) a dispor de Capitais Próprios adequados às perdas não provisionadas que daí possam resultar; (3) a tratar os Bancos contrapartes como outras mais entidades causadoras de risco.
v Perante isto:
- Os “Bancos em melhor estado” tudo têm feito para proteger os seus Capitais Próprios, e é natural que procedam com cautela, que não se exponham a novos riscos, até verem em que param as modas (atitude tanto mais sensata quando era, e é previsível que os Bancos aflitos vão ter de vender ao desbarato alguns activos bastante apetitosos);
- Os “Bancos aflitos”, esses, querem, primeiro, pôr as suas casas em ordem (o que significa reforçar Capitais Próprios e reduzir a exposição ao risco), antes de retomarem o business as usual.
v Daí, esta paragem súbita nas operações de crédito bancário a que se assiste – cujo efeito imediato só poderia ser o que está à vista: a contracção da oferta de ME e, consequentemente, do volume de dinheiro em circulação (as operações de crédito bancário são a principal fonte de emissão do dinheiro que circula). Por uma vez, desde há muitos anos, a ME extingue-se a um ritmo superior àquele a que vai sendo criada.
v E foi assim que a crise saltou do interior do sistema interbancário, onde pontua um reduzido bando de cartolas, para a esfera real da economia, atingindo-nos a todos, de uma maneira ou de outra.
v Num ápice, ficou evidente que o volume e a distribuição dos dinheiros, quer no interior do sistema interbancário (MEBC), quer entre pessoas e empresas (MF e ME), conta – e conta muito (contrariando o que a teoria económica vem tentando demonstrar desde há décadas).
v E começa a ser claro, também, que as taxas directoras dos Bancos Centrais, como instrumentos de política monetária, não têm, afinal, as virtudes mágicas que se lhes atribuía:
- Entre elas e aquilo que o endividamento custa ao comum mortal está o risco e o preço do risco – variáveis que as Autoridades Monetárias mal conseguem influenciar;
- Quando muito, as taxas directoras estimulam, ou demovem, a procura de dinheiro - mais a procura por Bancos (MEBC) do que por pessoas e empresas (ME);
- A oferta de ME (o grosso do volume do dinheiro em circulação, recordo) tem, afinal, um limite – aquele que é fixado simultaneamente pelos Capitais Próprios dos Bancos (um limite prudencial) e pela atitude de cada Banco face ao risco (este, um limite eminentemente comportamental, logo, volátil);
v Por outro lado, a MEBC que é injectada nos Bancos só pode extravasar para a esfera real da economia sob a forma de ME. Ora, a ME que aumenta o volume de dinheiro em circulação é só aquela: (1) que tem origem nas operações de crédito bancário; (2) que corresponde ao endividamento de pessoas e empresas (o endividamento é uma das maneiras de a procura de dinheiro ficar satisfeita); (3) que é a outra face do risco de crédito a que os Bancos ficam expostos; (4) que cativa (ou “consome”) Capitais Próprios.
v Acontece porém que, desde há anos, boa parte do consumo final assenta no endividamento: casas, automóveis, bens duradouros, gadgets electrónicos, turismo (só para dar alguns exemplos conhecidos), tudo é adquirido com recurso ao endividamento.
v Visto sob outro ângulo, indústrias (em sentido amplo) há com grande peso no PIB e no emprego que serão forçadas a reduzir em muito o nível de actividade (ou mesmo a encerrar), se os compradores finais não encontrarem Bancos dispostos a financiá-los.
v E a recessão terá dado assim os primeiros passos, começando por atingir com grande severidade toda a fileira dessas tais indústrias que, mesmo sem estarem elas próprias especialmente endividadas, dependem do crédito bancário para escoarem as suas produções.
v A recessão é, então, uma fatalidade? É. Pelo menos naqueles países e naquelas regiões onde toda a actividade económica gire em torno de indústrias cuja procura final só é solvente se for financiada - e naquelas economias, como a portuguesa, onde o endividamento de empresas e pessoas seja excessivo.
v A diluição do sobre-endividamento é condição sine qua non para que as economias vençam a recessão e para que a estabilidade regresse aos sistemas interbancários. Um processo mais ou menos doloroso, conforme o grau de endividamento, a maior ou menor capacidade competitiva do sector de bens transaccionáveis, o nível de capitalização dos Bancos (face aos riscos que os seus Balanços abriguem) e a habilidade de quem governar.
v Poderão os “Bancos em melhor estado” refugiar-se indefinidamente em aplicações sem risco? Não – e este é o lado bom da questão. Dificilmente, as aplicações sem risco permitirão aos Bancos (excepção feita a um ou outro Banco boutique) pagar as suas estruturas (sempre pesadas) e remunerar decentemente os seus accionistas (sempre insatisfeitos).
v O que é dizer: em breve, os Bancos terão de regressar ao mercado e terão de voltar a correr riscos – mesmo que a ideia os não entusiasme por aí além. Se quiserem permanecer solventes e rentáveis, não têm outro caminho. (cont.)
Junho de 2009