HERÓIS DE CÁ - 6
TOMÁS DA FONSECA - II
(1877-1968)
Seguramente, a pessoa mais erudita e afável que alguma vez conheci.
E quando me refiro a essas duas características, faço-o cumulativamente: pode ter havido alguém mais erudito e pode ter havido alguém mais afável mas dado que me coloco no centro do conhecimento, posso calmamente afirmar com a certeza absoluta de que nunca conheci ninguém que combinasse essas duas características em grau tão elevado.
Estou obviamente a aplicar aqueles dois adjectivos nos respectivos sentidos escolásticos: erudito – aquele que tem vasto saber; afável – delicado na maneira de tratar, cortês.
Nascido em plena serra do Caramulo, cedo ambicionou saber mais do que as primeiras e rudes letras que por ali aprendera. E mesmo esses rudimentos de alfabetização que aprendeu em casa já eram um avanço extraordinário para a época e para o local: ser filho de quem sabia ler e escrever era uma vantagem rara em relação ao resto do país mas tendo a escola paroquial a dezenas de quilómetros[1] por caminho serrano (inseguro mesmo para um adulto quanto mais para uma criança por muito determinada e forte que fosse) era um problema de grande dimensão, inultrapassável perante a falta de estrada. A escola laica mais próxima situava-se para além da centena de quilómetros pelo que, se queria estudar, lhe restava a solução do internato no Seminário de Coimbra.
Até ao final do Curso de Teologia – que propositadamente não concluiu para não tomar ordens – essa foi a instrução que formalmente obteve. Note-se que nessa época (finais do séc. XIX) a única Universidade existente em Portugal, a de Coimbra, se limitava aos cursos de Direito, Letras e Medicina. Ou seja, não era uma alternativa credível para quem já então considerava imprescindível ampliar e modernizar a educação em Portugal[2] em simultâneo com uma laicização geral da sociedade.
E porquê essa sentida necessidade de laicização? Por dois tipos de razões muito distintos: sociais e intelectuais.
As razões sociais tinham sobretudo a ver com a predominância do Clero sobre a vida das populações: a inspiração do temor da ira divina levando os crentes a uma atitude medrosa, incapacitante do pensamento criador e sobretudo do pensamento especulativo; generalizada baixa qualificação intelectual do Clero rural e frequente prestação de maus exemplos morais – vulgar assédio sexual e por vezes a usura em clamorosa transgressão dos votos de castidade e de pobreza.
Para quem sempre se pautou por uma evidente moral cristã, esta imoralidade clerical na terra beirã chocou-o fortemente desde a juventude e moldou-lhe a acção política ao longo de toda a vida.
No plano da intelectualidade, criticava a pregação de um Deus castigador e vingativo por oposição à de um Deus do perdão e infinitamente bom e preconizava a completa separação entre o estudo da Filosofia e o da Teologia[3].
Assim partiu para a vida…
Lisboa, Maio de 2009
Henrique Salles da Fonseca
[1] - Em Mortágua, sede do Concelho
[2] - Só em 1911 foram criadas as Universidades de Lisboa e do Porto.
[3] - Por antecipação ao que cerca de 50 anos mais tarde Karl Popper afirmou no sentido de que a Teologia só se justifica pela ausência da Fé