“O 25 DE ABRIL E A HISTÓRIA”
(de António José Saraiva)
A MINHA OPINIÃO
Estive para comentar o artigo “O 25 de Abril e a História”, de António José Saraiva, mas o meu texto foi crescendo com o fermento do entusiasmo, depressa ultrapassando os propósitos de um simples comentário. E assim optei por um artigo.
Adriano Miranda Lima
O que é dito por António José Saraiva, ou apenas insinuado, faz-me lembrar as seguintes palavras do general Franco quando lhe deram a notícia do golpe militar ocorrido em Portugal: “Ah, não vai acontecer nada de importante porque eles são cobardes”. Ou foram estas as palavras do Caudilho ou foram outras similares, mas a acusação de cobardia era bem explícita e intencional.
Ora, se tem algum cabimento, caberia a alguém mais capacitado passar em revista este libelo de cobarde e encontrar-lhe possíveis causas psicológicas, sociológicas ou antropológicas, ao passo que o desabafo de Franco temos apenas de o pôr na conta de um qualquer insanável recalcamento que a história do conflito entre os dois povos peninsulares explica sem margem para dúvidas. Penso que qualquer historiador isento poderá fazer toda a sorte de extrapolações, mas certamente que o apodo de cobarde em lugar nenhum encontrará razões para colar ao povo português.
Dito isto, e uma vez que, para o autor, o 25 de Abril terá feito eclodir as nossas fraquezas, inclusivamente a da cobardia, parece assim implícito que a “longa noite fascista” teve o mérito de uma domesticação psicológica, a ponto de obnubilar debilidades congénitas porventura ignoradas ou simplesmente adormecidas. Retrocedendo aos tempos ante-Liberalismo, séculos e séculos sucessivos, também, e por análogo raciocínio, é lícito perguntar se não foi a ausência das liberdades políticas que o futuro traria que permitiu páginas da história portuguesa em que tudo se pode encontrar menos cobardia, pusilanimidade ou conformismo com o destino.
Bem, pode ser prematura a extrapolação, mas é bem possível que tenhamos uma certa dificuldade genética em lidar com a democracia e as liberdades cívicas, pois que é a partir do Liberalismo que os nossos problemas parecem começar a agudizar-se, pela simples razão de, no confronto livre e aberto de ideias, raramente alcançarmos a percepção de que para lá das divergências ideológicas prevalece inapelavelmente o interesse nacional. Salazar percebeu isso e se não colocou o país entre os mais prósperos da Europa teve ao menos o mérito de reorganizar uma casa que a I República deixara em fanicos. Nenhum historiador pode negá-lo.
O golpe militar de 25 de Abril abriu esperanças legítimas que depressa foram estilhaçadas com o emergir na cena nacional do partidarismo político na sua pior feição. Ninguém pode ignorar que o Partido Comunista e algumas desaustinadas forças da extrema-esquerda desarticularam o pensamento original sobre a descolonização. A partir do momento em que o inexperiente MFA se deixou influenciar e contaminar, tudo se perdeu, tudo se precipitou. Nisto, subscrevo o que diz o autor e não é preciso acrescentar mais palavras. Foi efectivamente por culpa e ingenuidade de alguns militares do MFA, que, efectivamente, os “cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco”. Sobre isso não há nada a dizer.
Quanto à cobardia, que tem uma vertente física e uma vertente moral, julgo ter uma palavra a dizer. Comandei homens em Angola e em Moçambique, sempre em zonas de campanha, e posso afirmar, com muito orgulho e satisfação, que nunca vi casos de cobardia evidente entre os meus soldados. Medo todos temos, seres humanos que somos, mas cobardia é outra coisa.
Saí de Moçambique em Maio de 1974, sendo a minha Companhia rendida por outra que tinha participado em Lisboa em patrulhamentos de rua que se seguiram ao golpe militar. Essa e outras Companhias destinadas a render unidades no Ultramar tomaram parte nesse tipo de missões em Lisboa, mas ficaram irremediavelmente marcadas pelos germes da revolução, tanto no bom como no mau sentido. Do mau apercebi-me logo quando a recebi onde estava, no mato profundo. Os soldados e alguns Quadros inferiores apresentaram-se com pouco aprumo militar e denotando um comportamento a descambar para a indisciplina, não tardando a reparar que o Comandante da Companhia e os subalternos estavam aparentemente fragilizados. Na véspera de deixarmos o local, um soldado, minha ordenança, disse-me: “Sabe, meu Capitão, os gajos desta companhia andam a dizer que quando saírem os “velhinhos” vão mostrar ao seu Capitão e oficiais como é que vão ser as regras”. Fiquei estupefacto e não me surpreendeu, um ano depois, tomar conhecimento de um inacreditável episódio ocorrido com essa Companhia. Um certo dia, e quando as negociações para a descolonização estavam ainda em curso, uma força da FRELIMO aproximou-se dos arredores do quartel dessa Companhia, com intenções não muito claras mas em que não havia qualquer propósito bélico. Os furriéis e os soldados, na sua maioria já “revolucionários”, temeram o pior e resolveram o inconcebível. Prenderam o seu Capitão e os oficiais subalternos e, precipitadamente, embarcaram em todas as viaturas disponíveis, fugindo desordeiramente em direcção à localidade mais próxima, uma vila chamada Marrupa, onde havia um comando de Batalhão. A população local, temendo o pior, optou também pela debandada, ela que antes depositou toda a confiança na força militar antiga e suas antecessoras, com as quais, aliás, viveram em relativa harmonia e sem incidentes. Os que puderam enfiaram-se no espaço sobrante das viaturas militares, outros fugiram mesmo a pé, nomeadamente os guardas cipaios (guardas administrativos), que mais do que ninguém teriam razões para recear represálias da FRELIMO, visto que não só serviram o Administrador colonial local como eram os guias das várias operações militares. O Administrador ficou no seu posto, aguardando o desfecho dos acontecimentos. Muitos anos mais tarde, viria a encontrá-lo em Lisboa e contou-me mais pormenores do acontecimento, que agora não vêm a propósito. Disse-me que não foi molestado pelos homens da FRELIMO e que estes confessaram a sua perplexidade pela debandada dos militares e de grande parte da população.
Marrupa, Província do Niassa, Moçambique
Isto que acabo de contar é, de facto, um minúsculo exemplo destas palavras do autor deste artigo: “Os militares portugueses, sem nenhum motivo para isso, fugiram como pardais, largando armas e calçado, abandonando os portugueses e africanos que confiavam neles. Foi a maior vergonha de que há memória desde Alcácer Quibir.” Sim, é irrefutável e não tenhamos medo das palavras: VERGONHA. Em toda a extensão e em toda a substância da palavra.
Mas por que razão os mesmos militares, filhos do mesmo povo que, estoicamente, se sujeitou a 13 anos de uma guerra sem esperanças em 3 teatros de operações, viriam a ter comportamentos tão indignos de si próprios como da sua História? Culpa dos militares e do povo? Seguramente que não. E podemos rotular de cobardes muitos comportamentos indignos que macularam a honra de alguns sectores das Forças Armadas naqueles acontecimentos que já se perdem na memória dos 35 anos já decorridos?
É muito complicado psicanalisar certos comportamentos gerados pela confusão e complexidade dos fenómenos sociais, pelo que prefiro voltar à tese que atrás aflorei. Isto é, aos efeitos da fruição inconsciente da democracia, das liberdades cívicas, bens que nos são preciosos para galgar o caminho do futuro, mas cujo alcance real não é bem compreendido por alguns.
Em 25 de Abril, o Partido Comunista Português, conforme diz e bem o autor, achou que devia hipotecar os interesses do seu país às estratégias expansionistas da União Soviética. Com isso, influenciaram e conspurcaram a mente sedenta de progresso e mudança de alguns militares e a mancha depressa se propagou e contaminou as Forças Armadas, até que um rebate de consciência institucional e nacional permitiu trazer ordem onde se instalara a confusão e o desnorte.
Hoje, passados 35 anos desde a restauração das liberdades, compete-nos reflectir, discutir, escrever. É o que fez o António José Saraiva no seu artigo “O 25 de Abril e a História”. Diz ele: “as nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se no futuro próximo, merecemo-las, moralmente. Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de Nação independente”. Acho que, se analisarmos a história do século XX, o seu último quartel só nos oferece razões para optimismo e esperança, bastando comparar e sopesar factos e acontecimentos na sua ocorrência causal e sequencial. A I República soçobrou e justificou um longo regime autoritário, adiando as nossas esperanças de uma democracia europeia como as outras. O 25 de Abril abriu uma porta e por ela lobrigámos caminhos que vêm sendo trilhados com erros de percurso, sim, mas seguramente com sucessos que só um cego pode negar. Trinta e cinco anos de vida é já um tempo que nos dá um certo conforto e confiança.
No entanto, reconheço que permanecem ainda alguns sintomas da nossa dificuldade congénita em lidar com a democracia, sendo prova disso o uso desmedido e irresponsável que alguns continuam a fazer das liberdades, assim como a radicalização das querelas e conflitos partidários. Mas estou seguro de que estes 35 anos que passaram são irreversíveis na sua marcha. Com as dificuldades normais de percurso, com as crises e as conjunturas adversas, vamos por certo aprender continuamente, amadurecer a nossa consciência colectiva, tornar cada vez mais sólidos os ganhos e as conquistas rumo ao futuro. E é tempo de parar de lastimar e lamber feridas constantemente.