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A bem da Nação

Francisco Gomes de Amorim

 

 
 (continuação)
 
Averomar («A-ver-o-mar») na actualidade.
Nasceu em Averomar (nome mais lindo não há!), freguesia de Amorim, Concelho da Póvoa de Varzim, Portugal, em 13 de Agosto de 1827. Faleceu em Lisboa em 4 de Novembro de 1891.
 
É dele mesmo este auto-retrato:
I (2)
Advertência
(da 1ª Edição de “Cantos Matutinos” de 1858. Ortografia original)
Foi então que os engajadores, espalhando noticias exaggeradas, ou falsas, acerca das enormes riquezas do Brasil, e da facilidade com que ellas se obtinham, conseguiram desvairar um grande numero de rapazes da minha aldeia. Meu irmão Manuel foi umas das suas victimas, se não engajada, enganada pelos alliciadores. Para o acompanharmos ao bota-fóra, eu e a minha familia fizemos a jornada do Porto. Alli nos demorámos até quase à saída do navio que devia conduzil-o, e como eu ia a bordo todos os dias, os agentes procuravam seduzir-me para que fosse também para o Brasil, promettendo levar-me quase de graça. Incitaram-me tanto, e tão saudoso eu me sentia do meu irmão, que era o meu braço direito nas brigas escolares, que por fim pedi a minha mãe que me deixasse seguir o meu destino. Tinha havido já uma revolução domestica, para se consentir na partida de meu irmão, tão novo ainda; mas perante o meu pedido, todos puzeram as mãos na cabeça, e fizeram a minha mãe responsavel, perante o ceu e a terra, pelas desgraças que de futuro me succedessem se ella condescendesse com similhante loucura. Com tudo, eu chorei tanto, e tão bem, que não houve remedio senão fechar os olhos a todos os sacrificios, lançar mão dos recursos extremos, e deixar-me ir pela barra fóra com dez annos incompletos.
Para fazer justiça a meus queridos e bondosos compatriotas, declaro que todos foram sensiveis à minha partida, perdoando-me, ou esquecendo generosamente as numerosas memorias que deixei a quase todos, nas arvores derreadas, nas paredes caídas, e nas searas pisadas durante as minhas excursões de vagabundo. Quanto a minha mãe, nunca mais teve alegria, nem perdoou a si o haver-nos deixado partir, a mim e a meu irmão, para um paiz desconhecido.
Eu tambem chorei muito, com saudades d´ella, nos primeiros oito dias; mas a viagem foi-se tornando trabalhosa, e os perigos desvaneceram quase as magoas da ausência. O amor de mãe não tem rival na terra, e foi por isso que a minha ficou inconsolável, e que eu me fui habituando tão cedo a passar sem ella!
Depois de uma viagem a que não faltaram a fome, a sede, as calmas e tormentas, chegámos a essa formosa terra de Santa Maria de Belem do Pará, que tinha de ser testemunha dos meus altos feitos, e de me deixar um dia eterna saudade.
Santa Maria de Belém do Pará
Apenas desembarcámos, formaram-n´os em turmas no cães da alfandega, para que os negociantes da cidade viessem escolher d´entre nós aquelle que mais lhe agradasse.
Eu estava alli, sem saber para quê, no meio de uma multidão de gente de todas côres, que se ria de mim e dos meus compatriotas, ao mesmo tempo que varios homens branco, e vestidos quase todos também de branco, gyravam em torno de nós. Os meus companheiros iam desaparecendo, mas a mim ninguém me queria. Um d´aquelles homens vestido de branco andou muito tempo a mirar-me por todos os lados, chegou-se a mim duas vezes, levantou-me a cabeça, mandou-me fallar, e murmurou várias palavras das quaes eu percebi as ultimas, que foram as seguintes: isto não presta! Outros olhavam-me com commiseração, e diziam: É uma consciência trazer crianças como aquella. Um preto aproximou-se também, perguntou-me o meu nome n´uma lingua quase barbara, e accrescentou depois: se eu o queria servir! Outro, roto e descalço, carregou-me sobre os olhos o bonet que eu tinha na cabeça, com grande applauso de apupos dos seus patricios e amigos presentes. Um homem, depois de nos examinar a todos, disse duas palavras ao capitão do navio, que alli estava dirigindo o seu negocio, e intimou o meu irmão que o seguisse, sem lhe declarar para onde, nem em virtude de que direito o levava, e sem que o pasmo nos permitisse que nos despedíssemos uns dos outros; de maneira que na mesma terra, n´uma cidade pequenissima, só depois de seis mezes é que eu tive noticias de meu irmão! E à maior parte dos meus patrícios e companheiros de viagem nunca mais os tornei a ver...
Achava-me quase só, e sem perceber que estava n´um mercado de escravos brancos, e que era considerado refugo pelos entendedores! Por fim, do meio dos poucos homens de branco que alli se achavam ainda, sahia um, vestido de pardo, acariciou-me, pondo-me a mão no rosto, e convidando-me a seguil-o. Então rebentaram-me as lágrimas com violência; até alli encarara feramente a desgraça que não via, mas que sentia. Do momento, porém, em que me chegou a vez de partir, como os outros, sem saber para onde, chorei. Mas o meu patrão era um excellente e honrado homem. Chamava-se o sr. José Maria Fernandes, e inscrevo aqui o seu nome para sua satisfação. O digno comerciante vive ainda, apezar do rehumatismo que o maltracta; se estas linhas lhe chegarem à mão, peço-lhe que me perdoe a muita marmelada que lhe devorei, porque também eu lhe perdoo a prodigalidade com que me servia de palmatoadas, cada vez que o meu pundonor nacional me fazia quebrar a cabeça do preto, ou preta, que insultava o meu paiz ou a minha pessoa.
Comecei de tal modo a minha aprendizagem de caixeiro, que no fim de um anno podia com razão lisongear-me de ser o terror da maior parte da gente que frequentava o estabelecimento.
Não era pela minha força physica, nem pela minha figura, creio eu! O certo é que não sei d´onde me vinha audácia para tão grandes commetimentos; mas ainda que o insultador fosse um gigante, não ia sem correcção. As minhas armas eram os pezos da balança, os copos, as garrafas, e nos grandes apuros cortava as difficuldades saindo para a rua, e correndo o agressor à pedrada. De dois resultados que isto podia ter, um era sempre infallivel, no caso de haver cabeça quebrada: ou eu comprava à força de agua-ardente o silencio da victima, ou a palmatória se encarregava de me cortar os vôos de tão despropositado heroísmo.
Finalmente, chegou um dia em que o meu patrão declarou positivamente, que já não me podia nem queria soffrer. Eu tinha tirado à cara d´um homem elegantíssimo, que me dirigira um dito grosseiro, com quatro arráteis de manteiga de vacca. O desgraçado era creado, ou escravo, do presidente da província; andava sempre recendente de perfumes e vestido de roupa alvissima, trajo de que tinha grande presumpção e vaidade. Porque o não servi com a rapidez que exigia, e julgando-se offendido na sua qualidade de servo do chefe do paiz, permittiu-se a liberdade de me dizer uma palavra, que eu entendi não dever deixar passar, e respondi, batendo-lhe ás mãos ambas com uma enorme colher de manteiga sobre o nariz.
Confesso que por muito tempo me ensorberbeci, e tive esta acção por uma das mais brilhantes do primeiro período da minha vida. Os cabellos, admiravelmente frisados do meu adversário tornaram-se n´um estado lastimoso, e a cara ficou tão bem coberta que, a não ser a differença da matéria, parecia que eu queria modelar para lhe mandar fazer o busto. A victima pôde apenas tirar a manteiga dos olhos, ao tempo que eu, espantado mas não arrependido da minha audácia, enterrava novamente a colher no barril para repetir a dose à primeira tentativa de ataque que elle fizesse. Porém não era essa a sua intenção; mal abriu um olho, partiu como um raio pela porta fora, e foi mostrar-se ao meu patrão, que morava do outro lado da rua.
Em satisfação ao presidente e ao seu lacaio, apanhei duzias de palmatoadas; porém visto que ellas não evitaram de perdermos o freguez, quis o meu patrão desistir dos meus serviços com prejudiciais, e fallou a todos os seus visinhos, a fim de ver se algum me queria para as suas lojas; mas a minha reputação tinha chegado longe. Responderam todos atterrados, que não queriam nem ver-me! E foi necessário procurar-me um estabelecimento no extremo opposto da cidade, onde eu era ainda desconhecido, mas onde dentro em pouco me tornei de uma tal popularidade, que dezoito anos são já passados sem que ella tenha desaparecido inteiramente!
(continua...)

 

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