Francisco Gomes de Amorim- 1
Nasceu em Averomar (nome mais lindo não há!), freguesia de Amorim, Concelho da Póvoa de Varzim, Portugal, em 13 de Agosto de 1827. Faleceu em Lisboa em 4 de Novembro de 1891.
É dele mesmo este auto-retrato:
I
Advertência
(da 1ª Edição de “Cantos Matutinos” de 1858. Ortografia original)
Eu tinha pouco mais de nove annos, quando algumas leis repressivas do tráfico da escravatura preta encaminharam a especulação dos negreiros para o commercio dos escravos brancos. A Inglaterra usava da sua influencia sobre Portugal, e os traficantes não se tinham ainda lembrado de inspirar ás auctoridades da África portugueza o patriótico pensamento de se associarem com elles, para se vingarem da pressão exercida pelos ingleses sobre o innocente negócio.
Os negreiros correram pois para o continente do reino, e ilhas dos Açores, e dentro em pouco os mercados do Brasil abundavam novamente em carne humana, com grande vantagem para os consummidores, que podiam comprar escravos brancos mais baratos do que os pretos.
Os engajadores inundavam, como agora, as provincias do norte do reino, agarrando gente por todos os meios possiveis, e não sei mesmo se por alguns impossiveis, porque elles eram homens para grandes dificuldades. Investiam com as próprias autoridades ! e não posso avançar que seduzissem alguma, indo-a vender aos brasileiros, como fizeram a um pobre rei africano, que foi meu remador, affirmo que os filhos dos regedores de aldeia, e ainda dos administradores dos concelhos, eram os que de preferencia cubiçava a caprichosa exploração dos agentes. A razão desta distincção era talvez com o intuito de escarnecer d´um poder, que não queria ou não podia coarctar este criminoso trafico. O certo é que ninguem escapava à sua influencia, e que por fui eu fui victima deles, ainda que indirectamente, e por minha vontade.
A minha terra é uma linda aldeia chamada Avelomar, situada n´uma praia do Minho; pela sua situação e abundancia de população não podia ella deixar de ser um dos theatros de operações dos engajadores; e por se ligarem a esta circumstancia todos os acontecimentos da minha vida, permitta o leitor que eu ponha já em scena a minha humilde pessoa.
Nasci sem nenhuma circumstancia que possa dar relevo a uma biographia, e declaro que me criei como toda a gente, sem nenhum acontecimento notavel que, distinguindo os meus primeiros annos, me levasse mais tarde ao livro das infancias celebres.Eu não tinha agudezas, não era engraçado, e não aprendia coisa alguma. Os meus talentos limitavam-se a escolher cada dia um meio differente, que me livrasse de ir á escóla, porque n´ella me esperavam certas familiaridades d´um instrumento, cujo nome latino me havia inspirado horror á erudição do meu mestre. O instrumento era a ferula; e o professor andava-me sempre de olho em cima, porque, devo dizel-o, ainda que me custe, eu desacreditava o seu methodo de ensino. Entrei aos cinco annos para a sua aula, e sahi quase aos dez sem saber assignar o meu nome, ou soletrar duas palavras! Verdade é que tinha adquirido sobre os meus camaradas uma superioridade incontestavel nos exercicios archeologicos de atirar a funda, apanhar passaros a laço, e, visto que é preciso confessar tudo, em achar pretextos plausiveis para não dar lição, cada vez que isso me competia.
A minha boa mãe era a única pessoa que ainda não tinha perdido as esperanças de me vêr emendado; todos os mais, parentes, conhecidos ou mestres, me prophetisavam um futuro desastroso, declarando-me inutil para tudo. Um visinho muito rabujento,ao qual eu tinha derrubado uma parede para apanhar um ninho de pintasilgo, fez-me o tremendo prognostico de que eu ainda havia de acabar malfeitor de estrada! Deus lhe perdôe, porque tinha excelentes uvas e eu vingava-me n´ellas da maledicencia do proprietario.
As minhas occupações mais favoritas eram grandes correrias pelas praias do Minho, onde eu ia empoleirar-me nos rochedos mais elevados a olhar para as ondas horas esquecidas, cada vez que via passar as azas brancas d´um navio a duzentas braças da costa. Fóra d´isto, vagabundeava pelos campos dias inteiros, contemplando as cristas azuladas das serras de Barroso e de S. Felix, sem me lembrar de almoço ou de jantar, e ainda menos dos cuidados de meus parentes.
Estas distracções, em similhante edade, não podiam deixar de dar nas vistas a toda a gente. Aconselharam a minha mãe que me arrumasse, fosse como fosse, porque eu tinha ares de lunatico, além de ser um vadio que não queria aprender coisa alguma. Chegaram a assustal-a, apezar dos meus poucos annos; e um lavrador nosso parente offereceu-se para me corrigir, se quizessem entregar-me aos seus cuidados. Á vista da minha rudeza, tiraram-me da escóla, com grande satisfação do mestre, e a minha familia resolveu que eu seria agricultor. Apenas, porém, me haviam installado em casa d´aquelle que pretendia fazer-me gente, levantei contra elle cinco tias, que bebiam os ventos por mim, por causa d´um puchão de orelhas. Elle queixou-se a minha mãe, e eu fui chamado á barra; mas pedi uma sessão secreta, e n´ella convenci de que elle me assassinaria infallivelmente, se me deixassem lá ficar. Não há logica para as mães como as lagrimas dos filhos. Fiquei em casa, mas por pouco tempo. Um cordoeiro da Póvoa de Varzim comprometteu-se a mandar-me ensinar a ler e escrever correctamente, com a condição de que eu viveria em sua casa para vigiar o estabelecimento. Mas quando lá me apanhou, mandou-me virar á roda, do mesmo modo que se eu f^ra um dos seus aprendizes. Estava arranjado comigo! Formei-lhe perante a minha santa mãe um capitulo muito mais odioso do que o do lavrador, e o affecto materno, commovido com a descripção dos horrores e maus tractos, que eu pintava com certa viveza de colorido, arrancou-me a esse novo tyrano, reconduzindo-me triumphante ao lar domestico.
(continua)