burricadas 54
os passivos do nosso descontentamento - III
v Não tanto pela crise, mas pelo modo como ela está a ser combatida, cada economia nacional (refiro-me às economias mais desenvolvidas, bem entendido) encontra-se, nos dias de hoje, partida em três pedaços praticamente estanques:
- O sistema bancário em sentido restrito – onde a liquidez que o Banco Central emite a ele retorna de imediato sob a forma de reservas excedentárias (mais raramente, através da aquisição de TBC/Títulos do Banco Central), ou fica a circular timidamente (isto é, por prazos curtos) nos mercados interbancários;
- O triângulo formado pelo Banco Central, a Banca Comercial e o Tesouro – com os Bancos Comerciais a utilizarem a liquidez que recebem do Banco Central para subscrever as sucessivas emissões de Dívida Pública (uma maneira despreocupada, mas infalível, de monetizar Dívida Pública);
- E tudo o resto - agora à míngua de liquidez, porque tem de continuar a servir as suas dívidas, mas não consegue colocar nova dívida (salvo quando passa a ficar coberta por mais uma garantia do Estado).
v É difícil perceber como, por esta via, a conjuntura económica (o tal “resto”) estabilizará suficientemente para que todos (Banca e Investidores) voltem a fazer uma ideia razoável dos riscos a que se expõem, e consigam atribuir preços confiáveis a esses riscos. Esta mistura de Dívida Pública, garantias do Estado e injecções de liquidez é, não explosiva, mas implosiva.
v Obviamente, há um patamar abaixo do qual a actividade económica não cairá – porque, com crise ou sem ela, a vida continua (mal, mas continua). Contrariamente ao que aconteceu no passado, porém, a dinâmica demográfica das economias ocidentais (com excepção da norte-americana) já não é de molde a induzir um estímulo autónomo (a procura residencial) que amorteça a crise.
v A vida continuará também para a Banca - o que implica pagar periodicamente ao seu pessoal e continuar a comprar uma multiplicidade de bens e serviços. Ora, as margens (apesar de tudo, magras) que a triangulação da Dívida Pública lhe vai proporcionando dificilmente darão para suportar por muito tempo estruturas que os “anos dourados” empolaram. A perspectiva é, assim, de despedimentos em grande escala – onde a legislação aplicável o permitir.
v Mas, cedo ou tarde, a pressão do passado (o peso da estrutura, o serviço da dívida titulada, a insatisfação de accionistas habituados a dividendos mais fartos) trará de volta o apetite, talvez reticente, pelo risco e as operações de crédito bancário - para alívio daquele “resto” onde as conjunturas, afinal, se definem. Neste ponto, vamos todos redescobrir que, no domínio da economia e da finança, é preciso ser paciente e dar tempo ao tempo.
v Tempo é também uma variável fulcral da acção dos Governos, sobretudo hoje em dia. Tempo e pontaria - para que a Despesa Pública acerte nas zonas mais densas do tecido económico: aquelas para as quais converge o maior número de actividades, a montante e a jusante; aquelas mais trabalho-intensivas; aquelas, enfim, onde cada cêntimo gasto desencadeia uma miríade de trocas monetárias (como vulgarmente se diz: onde o dinheiro se multiplica). E quais são elas? Ouço o Leitor perguntar.
v A resposta variará de país para país. Mas duas são, com certeza: a construção residencial e a agricultura moderna. Da primeira, talvez não seja bom falar por uns tempos. Quanto à segunda, felizes são os países que ainda a conservem de boa saúde.
v As trocas transfronteiriças, não sendo propriamente uma dessas zonas (o conceito de comércio internacional é demasiado vago), são, apesar disso, determinantes a vários títulos:
- Os países podem querer manter dentro das suas fronteiras os efeitos dos estímulos que financiem com o dinheiro dos seus contribuintes (o regresso do proteccionismo);
- As maiores economias podem hesitar, pensando que uma boa parte dos seus esforços orçamentais irá perder-se em benefício dos seus parceiros comerciais (a síndrome do líder relutante);
- O saldo da BTC/Balança de Transacções Correntes, em todas as circunstâncias, será a medida do sucesso (ou do falhanço) do combate à crise, a nível nacional;
- A evolução dos desequilíbrios entre as BTC das economias com maior peso no comércio internacional será, por sua vez, a medida do sucesso (ou do falhanço) das acções concertadas para combater uma crise que é manifestamente global.
v Bem vistas as coisas, não são só os Bancos Comerciais que devem testar, regularmente, a sua prontidão em cenários de crise financeira (stress tests). Os Governos e os Bancos Centrais também – e em conjunto, para não se atrapalharem mutuamente quando a necessidade apertar. Quem diria? (cont.)
Fevereiro de 2009