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A bem da Nação

O TÚMULO MISTÉRIO

Nasceu nos finais do século XVI em Oleiros, não longe de Castelo Branco; ainda novo, foi admitido no “Colégio das Onze Mil Virgens” em Coimbra, então um dos principais centros jesuítas de ensino, para quem o Padre Iñigo Lopez Recaldo – posteriormente conhecido como Santo Inácio de Loiola – escrevera as famosas “Ratio Studiorum”; em 1600 embarcou para Goa a fim de concluir os estudos e se ordenar.

Como jesuíta ordenado, é-lhe confiada a instalação da primeira missão católica no norte da Índia, mais precisamente em Agra, junto da corte muçulmana Moghul. É aí que ouve falar duma civilização de origem cristã, algures lá para o centro da Ásia.

Corre o ano de 1620 quando se dirige a Deli onde, com vestes indianas, se integra numa peregrinação ao Santuário de Badrinath, nos Himalaias. Chega ao glaciar onde nascem o Ganges e o Bramaputra mas continua a escalada e passa às vertentes norte da cordilheira. Trata-o das queimaduras do gelo e dá-lhe guarida o rei de Tsaparang que o autoriza a divulgar a Palavra. Assim conhece a civilização tibetana e de imediato constata que nada tem ela a ver com o cristianismo. Mas agrada-lhe a espiritualidade dessa outra religião e quando regressa a Agra para buscar quem o ajude a estabelecer a nova missão no Tibete, escreve uma longa carta ao Padre Geral da Companhia de Jesus, Muzzio Vitelleschi, dando-lhe notícia das novidades que descobrira do outro lado das montanhas.

Essa carta fez o espanto da Cúria romana, esbateu os relatos de Marco Polo e entusiasmou de tal modo quem a leu que se transformou num formidável êxito editorial em toda a Europa. Era o regresso à época dos descobrimentos; o mundo continuava a descobrir-se pela mão dos portugueses apesar do domínio espanhol. Foi traduzida em 14 línguas. Era o ressurgimento da portugalidade. Nem os Filipes conseguiram calar tamanho fenómeno literário e de orgulho nacionalista no país dominado.

Voltando mais duas vezes ao Tibete, somou seis escaladas dos Himalaias quando a maior parte das pessoas nem a uma sobreviveria.

Regressado definitivamente a Agra, ouve falar de um tal Santo da Caxemira e qual não foi o seu espanto quando lhe dão a entender que se tratava do próprio Jesus Cristo sobrevivo à crucificação, ali enterrado não muito longe de Sua Mãe. Isto já não era uma nova religião mas sim uma blasfémia. E assim foi que tudo relatou ao Padre Geral Jesuíta a quem pediu orientações.

Só que esta carta não saiu dos corredores eclesiásticos; não foram dadas as orientações que tinham sido pedidas e, pelo contrário, foi decidido cortar quaisquer ligações com essa fonte blasfema.

Como prova de gratidão por altos serviços prestados à Igreja, foi nomeado Provincial Jesuíta do Oriente, em Goa.

Mas em Goa imperava a Inquisição que, sob o feroz comando dominicano, punia severamente hindus, judeus, jesuítas, franciscanos e outros que não temessem o seu Deus castigador e vingativo.

Sacrílegos, idólatras, supersticiosos, prostitutas e pregadores da Palavra do Deus infinitamente bom e do perdão, todos eram submetidos a julgamento e sentença da Inquisição.

Essa a diferença: o Deus castigador e vingativo de dominicanos e beneditinos e o Deus infinitamente bom e do perdão de jesuítas e franciscanos.

Agora que era o Provincial Jesuíta do Oriente, decidiu tudo fazer para acabar com a Inquisição em Goa e a melhor forma de o conseguir era implodi-la: intrometer-se e neutralizá-la. A implosão só se conseguiria depois da neutralização. Mas havia um problema: o anterior Padre Geral, Cláudio Acquaviva, tinha proibido os jesuítas de estabelecerem qualquer tipo de colaboração com a Inquisição e essa ordem mantinha-se em vigor.

Mas fora S. Francisco Xavier, jesuíta, que pedira ao rei D. João III que enviasse a Inquisição para Goa. Então, como era? Um jesuíta venerado podia fazer o que estava vedado a um jesuíta venerador?

Terá sido longa e secreta a meditação mas rápida e pública a decisão que se lhe seguiu e eis que se consegue fazer nomear Notário para um julgamento que iria por certo punir uma série de pobres almas que apenas haviam não correspondido às expectativas dos severos Inquisidores.

Pela primeira vez em muitas décadas, a Inquisição de Goa limitou-se a decidir muitas penitências mas não sentenciou ninguém à morte; o sermão da celebração que antecederia o auto-de-fé seria proferido pelo Notário.

Pela primeira vez na história, um auto-de-fé não seria antecedido por um sermão que exalasse ódio e medo de um Deus mau; a Palavra do bom Deus ganhava terrenos até então reservados a outras prédicas.

Mas o ambiente no Colégio de S. Paulo não era pacífico pois havia muito quem não aceitasse que o seu Provincial oficiasse num auto-de-fé. Havia que impedir que acto tão grave pudesse ocorrer.

Na véspera do auto-de-fé, o refeitório esperou que o Provincial se persignasse para se dar início à refeição da noite. Encomendados a Deus e agradecido o dom dos alimentos, o Padre Provincial sentou-se e bebeu um trago de água. Logo deitou as mãos à garganta e . . . morreu três dias depois em grande sofrimento.

Chamava-se António de Andrade e não subiu aos altares.

A Inquisição só foi extinta em Portugal em 31 de Março de 1821 em sessão das Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa e o túmulo da Caxemira continua a representar um grande mistério para muita gente. Quem será aquele Santo?


Lisboa, Setembro de 2005

Henrique Salles da Fonseca

Publicado em Panjim, Goa, em Outubro de 2005

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