PORTUGAL É O QUE NÓS SOMOS (I)
Todos sabemos que raro é o dia em que não entram nas nossas caixas de correio electrónico mensagens veiculando denúncias de figuras públicas, situações de privilégio, maledicências, anedotas pífias sobre políticos ou imagens denegridoras do estado da nação, fazendo desta uma caricatura em que os mais lúcidos não se reconhecem. Quase sempre anónimas, sem endereço de proveniência reconhecível, essas mensagens não poupam aqueles que ainda sentem algum frémito de emoção ou simples gosto cívico para concorrer ao exercício do poder político. Chega a ser simplesmente fastidioso e demolidor do nosso estado de espírito, já de si abalado por dificuldades de outro jaez, o esforço que alguns fazem para nos convencer que a melhor terapia nacional será uma boa dose cavalar de veneno para prostrar o cadáver nacional e tentar depois ressuscitá-lo com outras terapias, estas, no entanto, nunca clarificadas. Esta minha inflexão conclusiva não passa de uma ironia, mas ela oculta um lado trágico caso estejamos a lidar com almas desnaturadas ou movidas simplesmente pela má fé. Sejam quem forem os autores das ditas mensagens encapotadas, e quaisquer que sejam as suas motivações, pouco valerão pessoas que agem sob o anonimato.
Diria que os autores de tais cruzadas representam uma amostragem menor daquela estirpe que se empenha em crucificar a alma nacional e nos fustiga, desde há mais de um século, com as suas profecias de desgraça. Uns, como o Eça, davam a cara e assumiam publicamente o seu papel de psicanalista da consciência nacional, ainda que possamos hoje perguntar por que raio o nosso célebre escritor havia de tomar a “sua” França como modelo comparativo para um país tão diferente no seu povo, na sua geografia, na sua génese e na sua história. Até porque, bem vistas as coisas, o nosso Eça, se nisso se tivesse empenhado, motivos encontraria para criticar também a “sua” França, caso os seus sentidos não andassem por demais extasiados com o vanguardismo cultural do país anfitrião, o que talvez lhe embotasse a razão e a isenção indispensáveis a um olhar mais largo, mais aprofundado e mais transversal sobre realidade humana. Quando se dispõe de um estatuto social privilegiado garantido pelo erário público, sem ter de se submeter a outro escrutínio que não o literário, como era o caso do Eça e outros, fica sempre subjacente a suposição de um défice de verdadeira coragem cívica àqueles que se limitam a denegrir mas que se furtam à verdadeira prova de fogo que é o exercício do poder. Isto não é um libelo ao Eça, pois a ideia é a partir dele extrapolar e admitir que esta mesma questão é aplicável, quiçá com mais veemência, a alguns autores conhecidos dos nossos dias, e não são poucos.
Com efeito, na actualidade, continua a mesma saga com outros Eças, que também dão a cara, sim, mas que nada de concreto, coerente e convincente oferecem à resolução dos verdadeiros problemas do país. Insinuam alguns remédios em prosas quase sempre deliciosas pelo recorte literário, mas quando nos damos ao trabalho de as espremer para extrair a poção salvadora ou reabilitadora, confrontando os prognósticos e os receituários emitidos em tempos diferentes, não raro notamos incoerências e ambiguidades flagrantes que nada abonam a favor da seriedade e do rigor intelectual dos seus autores. Digamos que muitos deles são sensíveis a modismos e frequentemente oscilam como um cata-vento, com as suas conveniências pessoais e de grupo normalmente a pesarem sempre mais que a liberdade da própria consciência. A invocada liberdade de consciência que alguns poucos alegam nunca o será verdadeiramente porque o biombo daquela esconde comprometimentos insondáveis, que muitas vezes se filiam apenas na simples vaidade e na ostentação intelectual. Estranha-se que certos críticos e opinantes militantes revelem tibieza perante a perspectiva de se candidatarem ao poder, única forma de nos demonstrarem a validade das suas soluções milagreiras. Com a sua retórica, deixam-nos sempre uma mancheia de literatura mas um vazio de soluções. Deixam-nos balões cheios de retórica que uma vez rebentados apenas nos divertem com o estampido.
Lamentavelmente, verificamos, talvez não de todo surpreendidos, que o país não é capaz de empreender uma única reforma política profunda. Os que antes as defendiam acerrimamente são os mesmos que, não estando no poder, procuram dificultar a vida aos que as têm de executar, quer utilizando diatribes discursivos que nada exprimem de concreto, quer limitando-se a pospor o malfadado “mas” a cada intervenção apreciativa. Só porque estão do outro lado da bancada. Os que, por ideologia política de genética contrária, a elas se opõem visceralmente contam muitas vezes com o piscar de olho disfarçado daqueles que estão na oposição mas são, por natureza, partido do poder, e, portanto, co-responsáveis pelo estado da nação. E assim a governação tende a ser um quase faz-de-conta.
É esta distopia cívica que leva a que alguns já considerem ingovernável o nosso país, triste sina que nos persegue desde tempos bem remotos se dermos crédito ao governante romano que escreveu para o seu imperador a queixar-se “deste povo que nem se governa nem deixa governar”. E, no entanto, os portugueses têm tanta capacidade de trabalho e tanta criatividade como os seus parceiros europeus. Se outras provas não houvesse, é o Portugal da era quinhentista que o lembra. E, na actualidade contemporânea, a prova que entra pelos olhos dentro é o Portugal de hoje comparado com o de há 30 anos.
Tomar, 26 de Novembro de 2008
Adriano Miranda Lima