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A bem da Nação

OS LOBOS E OS FAUNOS – 4

Fauno, rei do Lácio, ficou na mitologia romana como divindade campestre assobiando em conjunto com centenas de melros a melodia que nos campos ouvimos das flautas mágicas em protecção da fecundidade dos rebanhos. Mas a esta bucólica melodia contrapõe-se o uivo de vorazes lobos.

 

Mais prosaicamente, conta-se a história de que um dos “heróis” do 25 de Abril foi à Suécia explicar àqueles “pacóvios” do que tratava a revolução portuguesa e que a certo momento de brilhante sessão de esclarecimento e dinamização cultural afirmou qualquer coisa do género de que “em Portugal já acabámos com os ricos”. Com alguma timidez perante tanta glória, terá um dos atónitos escutantes balbuciado qualquer vago pensamento de que “na Suécia já acabámos com os pobres”.

 

Eis um diálogo do maior interesse para todos os que nos dedicamos às questões do desenvolvimento.

 

E a pergunta que logo nos assoma: - Por que é que há países tão ricos e outros tão pobres?

 

Já Wilhelm Schaumburg Lippe (1724-1777), como Marechal General do Exército Português a convite do Marquês de Pombal, ao redigir o nosso primeiro Regulamento de Disciplina Militar, determinou que “o Sargento deve saber ler e escrever pois o Oficial, sendo nobre, pode não saber”.

 

Se isto se passava no Exército, pilar essencial do Estado, podemos imaginar por onde andava o nível médio cultural por esse Portugal além . . .

 

David S. Landes, Professor (emeritus) de Harvard, escreveu um artigo de jornal a que deu a forma de livro com 603 páginas de texto, 51 de notas, 81 de bibliografia e apenas 19 de índice remissivo a que deu o sugestivo título algo smithiano de “A riqueza e a pobreza das Nações”. A tese fundamental deste americano é a de que um céu radioso conduz ao folguedo e à hilaridade de quem sob ele se passeia enquanto um céu plúmbeo induz à introspecção, à falta de humor, ao trabalho árduo. Se a isso juntarmos aos do Sol o dogmatismo católico e o latim como arma de distanciamento dos fiéis mantidos iletrados como instrumento de docilidade relativamente aos Santos Mistérios e aos das nuvens a promoção pelos protestantes da interpretação da Bíblia devidamente traduzida nas várias línguas vernáculas, temos naqueles o temeroso analfabetismo e nestes a racionalidade, o método e a já citada ausência de humor.

 

Assim nos conduz o Professor Landes ao Carnaval carioca dos favelados e ao maior nível mundial de patentes per capita na Finlândia enquanto, pela nossa parte, contamos com o nobre Oficial português mas também com o Marechal austríaco.

 

Creio que o autor desta tese ainda hoje não conhece a história do militar português na Suécia mas quase aposto que o militar português também ainda hoje não sabe da existência do Professor Landes.

 

Aceitemos ou não o valor histórico-científico da tese de Landes, ela pode, mesmo assim, ser percebida empiricamente; a iliteracia do militar português que em 1974 foi à Suécia carece de análise mais subtil do que a simples percepção empírica ou mais leviano tratamento jocoso. O meu Avô, Tomás da Fonseca (1877-1968), quando quis estudar mais do que os rudimentos que se ensinavam nas aldeias serranas da Beira Alta, teve que ir para o Seminário de Coimbra pois não havia escolas públicas ou privadas na região. Uns anos mais tarde e pela mesma razão, o Doutor Salazar teve que ir para o Seminário de Viseu. Assim foi que chegámos ao 5 de Outubro de 1910 com uma taxa de analfabetismo adulto que rondava os 90%. As campanhas de alfabetização de adultos dos anos 50 e 60 sofreram enorme resistência com base no argumento de que o povo era muito mais feliz na ignorância e que não tinha interesse nenhum em saber escrever. E eis que chegámos ao 25 de Abril de 1974 com 25% de adultos analfabetos. Formidável: nessa época revolucionária, um em cada quatro adultos portugueses não sabia ler e muito menos escrever.

 

Começamos deste modo a compreender que o tal militar que viajou até à Suécia não estava assim tão longe da clarividência média nacional. A massificação da educação tem sido uma obra ciclópica nestes últimos 30 anos e se numa geração estamos a querer fazer o que não foi feito em 850 anos de História pátria, fácil é compreender que vivamos hoje num turbilhão de inadaptação dos que se encontram em lugares de chefia sem terem bebido o imprescindível chá nas tenras idades e dos que, nascidos em berço de oiro, não compreenderam que a hora não era de ócio, hilaridade e folguedo, se deixaram embalar por vulgaridades mundanas e quando acordaram para a realidade se viram comandados pelos netos dos servos dos seus próprios avós. E bramam – não sem razão – que se assiste a uma inversão de valores.

 

Aconselha a sabedoria popular que “não sirvas a quem serviu nem peças a quem pediu”. E de quem é a culpa? Nossa, dos que há várias gerações comemos sentados à mesa, dos que devíamos ter dado o exemplo, dos que tínhamos todas as condições de fortuna para constituir a elite nacional. Não quiseram estudar, preferiram viver dos rendimentos e quando a erosão monetária lhes mostrou que as despesas já eram superiores às receitas, venderam o património e tiveram que aceitar empregos menores para poderem continuar a almoçar e jantar. Mais do que frustrados, sabem que estão falidos. Dos que estudaram, houve quem vingasse num cenário competitivo como nunca existira em Portugal. Sentem-se vitoriosos, têm orgulho no que conseguiram à sua própria custa. Usam colarinho branco, deram um salto formidável dos campos em que labutavam os avós de Sol a Sol e do colarinho azul que os pais usavam no trabalho. Ninguém os agarra e quem se lhes atravessar no caminho é de imediato cilindrado. Não olham a meios para atingirem os seus próprios fins.

 

E assim vem à tona o rancor por quem lhes possa fazer sombra. Demolir, demolir, demolir para que só eles fiquem no topo que tanto lhes custou conquistar. É também a vingança contra o passado que não tiveram e que invejam a quem o teve. É vê-los por essas Autarquias além a financiarem os Partidos que os usam como bandeiras locais e a tomarem as vezes de Condes e Marqueses na verdadeira acepção etimológica dos termos. É vê-los nos telejornais a dizerem que tudo está mal, que todos são gatunos e que tudo são escândalos pois é disso que a massa informe de lustrosos colarinhos brancos se alimenta. É vê-los nos hipermercados a preferirem o estrangeiro porque o que é lá de fora é que é bom e o que é nacional não presta. Quanto mais não seja porque é chique esticar o braço para etiqueta exótica em vez das saloiadas de que ainda têm vergonha.

 

É vê-los, é vê-los, é vê-los . . .

 

Lembra-nos a sabedoria popular que “se queres ver o vilão, põe-lhe o chicote na mão”.

 

Bem maçados andamos os que sabemos ler e escrever e que há várias gerações comemos de garfo e faca. E perguntamos: onde está a elite nacional? É isto? A resposta é evidente: é pouco, é mau e ao processo de massificação da cultura tem que suceder imediatamente o da construção de uma elite nacional.

 

Na mitologia do Embaixador Soares de Oliveira, os búfalos devem comandar as ovelhas; na minha, os vorazes lobos devem dar lugar aos faunos.

 

Lisboa, Outubro de 2005

 

 Henrique Salles da Fonseca

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