As doenças, os doentes e o médico...
... nas épocas das civilizações antigas.
Os povos mesopotâmios e egípcios fundaram as cidades-estado, introduziram a irrigação, inventaram a escrita, dividiram o circulo em 360 graus, fizeram o primeiro calendário solar, redigiram os primeiros códigos legais. Com eles nasceu a medicina.
Era uma medicina arcaica calcada na observação da natureza, cheia de rituais e magia, exercida com arte, por sacerdotes, simbolizada por uma cobra enrolada numa vara, representação da renovação da vida sobre a árvore da sabedoria.
Essas áreas mediterrâneas, muito quentes durante o dia e frias à noite, situadas na rota das caravanas, sofrendo inundações periódicas, eram regiões expostas com freqüência a doenças e pragas trazidas pelo homem e animais. Problemas infecciosos, gastrintestinais, respiratórios, oculares, eram comuns. Cuspir ou urinar em canais de irrigação, comer em prato de doentes, molhar os pés em água suja, eram pecados. Para os mesopotamios, adoecer era sinal que haviam transgredido esses conceitos.
O médico, em geral um sacerdote, era um homem erudito que conhecia literatura e astrologia, as receitas antigas, os rituais mágicos, as águas, e que fazia adivinhações. Os tratamentos eram feitos com fórmulas, drogas e operações de menor porte. Os honorários e penalidades eram estipulados por lei.
O centro da vida era o fígado para os mesopotâmios, para os egípcios, os sistemas respiratório e circulatório. O coração era onde habitava a inteligência. Tratavam as doenças respiratórias peitorais com fumigação, espalhando pó de alcatrão numa fogueira feita com espinheiros e deixando a fumaça penetrar no nariz, boca e ânus. Todo o corpo era coberto com coalhada e envolto em linhaça, pulverizada por três dias. A fumigação podia ser feita de esterco de porco, cão, chacal, raposa ou gazela. Ou ainda de chifre de veado, enxofre, betume e ossos humanos. Para a tosse faziam joio rasteiro com rosas trituradas regadas com sal e azeite A cebola, alho, feijão, cereais, especiarias, condimentos, folhas de louro e tamareira, cipreste e pinheiro, e outras plantas, eram usadas nos alimentos e como medicamentos. Os egípcios tinham hábito de dar aos seus escravos alho para fortalecê-los.
Os remédios eram ministrados em supositórios ou via uretral, por um tubo. As poções orais eram preparadas à noite e tomadas antes do nascer do sol, com o estomago vazio. Procedimentos como flebotomias (cortes nas veias, sangrias), aplicação de ventosas, operações oculares, eram também executados. Se acaso algum paciente ficasse cego, devido algum erro cirúrgico, o médico era castigado com o decepamento das mãos. Em caso de morte de nobre, o médico que o tratou também perdia a vida. Leis draconianas que resultaram nos primórdios da legislação sobre a imperícia médica.
O médico do antigo Egito, como o da Mesopotâmia, era muito conceituado e admirado. Possuía o que se dizia um julgamento empírico, destreza manual, formação e treinamento sob a orientação de médicos mais velhos e experimentados. Aprendia nos textos dos papiros, livros da sabedoria, os conhecimentos adquiridos e registrados ao longo dos tempos. Se no inicio da civilização o médico fazia parte da classe sacerdotal, com a evolução dos anos passou a ter uma posição independente, autônoma. Apareceram os primeiros especialistas, aqueles que tratavam dos olhos, do ventre, dos dentes, e o guardião do ânus, o futuro proctologista. Havia também aqueles sem títulos, os denominados chefes dos médicos, inspetores, ou superintendentes. Muito provavelmente os protótipos dos atuais Conselhos de Medicina. Com freqüência eram remunerados por presentes. Os médicos da nobreza eram sustentados por ela, e os empregados nos templos eram pagos pelo orçamento do templo, ao qual estavam ligadas também as escolas médicas que davam formação e treinamento, à semelhança da medicina contemporânea.
Inhotep, um dos mais notáveis médicos da antiguidade, foi responsável pela saúde do rei ZOZER, 3500 a .C. Era arquiteto, sacerdote, escriba, astrônomo e grão-vizir. Construiu a pirâmide de SAKKARA, a mais antiga estrutura de pedra dessa categoria, onde se via a base da arte egípcia, rica em trabalhos de baixo-relevo e colunas.
Para os egípcios antigos o corpo humano era constituído de canais que faziam o transporte do ar, do sangue, do alimento e do esperma. As doenças eram interpretadas como uma obstrução ou inundação deles. A anticoncepção era conhecida e feita colocando-se tampões vaginais com plantas, tecido de linho e até excrementos de animais (crocodilo). Enquanto os romanos usavam uma espécie de preservativo feito à base de tecido fino, víscera de animais (bexiga), para se protegerem das doenças sexualmente transmissíveis e para evitar filhos. Cada órgão tinha um deus particular para regê-lo, que podia desfazer feitiços, provocadores de doenças, com preces, embrião da nossa futura psicologia. Os egípcios entendiam que havia uma interdependência entre o sistema vascular e a região anal. Por isso eram freqüentes as prescrições de lavagens e enemas para refrescar o ânus e o coração. Nota interessante, pois a medicina moderna usa a terapêutica retal para baixar a febre.
A medicina popular era basicamente mágico-ritualista, mais barata e acessível aos pobres. A medicina empírica, reservada aos ricos e nobres, dava diagnósticos levando em consideração também a observação e o exame de apalpação do doente. Usava medicações à base de mel, cerveja, frutas, especiarias, ópio, sal, pó de pedras, antimônio, partes de animais (gordura, sangue, excrementos,...). A purgação era um tratamento rotineiro, assim como as lavagens vaginais e o uso de supositórios. Pequenas cirurgias eram feitas como a lancetação de furúnculos, abscessos, extirpação de tumores, e a circuncisão em meninos. A idéia de putrefação estava relacionada ao processo de biológico de deterioração. Para eles a matéria pecaminosa estava no material fecal, cuja absorção conduzia à destruição do corpo. Devido a isso a preocupação constante com a limpeza dos intestinos. Este conceito se refletia não só na medicina, mas também na religião. A função do médico era preservar o corpo para a vida terrena. Após a morte, o embalsamamento seria o meio de evitar a deterioração do corpo, com a ablação das partes pútridas, preservando-o para a outra vida.
Uberaba, 07/09/09
Referência: A Medicina Arcaica
JBM. Cultural (Jornal Brasileiro de Medicina- vol. 48 n.o4)