PASSE DE MAGIA – 2.1
Curtinhas nº 60
ESTE LEGISLADOR É MESMO UM COMPINCHA
v Casamento não é sinónimo de duas vontades que querem viver em comum? É. Mas é também um contrato.
v Trabalhar por conta de outrem não é exemplo de uma convergência de necessidades e interesses? É. Mas é também um contrato.
v Arrendar uma casa não é outro exemplo de vontades que coincidem? É. Mas é também um contrato.
v Interromper voluntariamente uma gravidez não resulta de um contrato - mas nem por isso deixa de passar ao lado da lei que se apressa a qualificar este acto à luz de determinados princípios.
v Todos estes casos envolvem situações das mais fundamentais na vida individual e, simultaneamente, nas sociedades organizadas: (a) ali, o propósito assumido de constituir uma família; (b) logo a seguir, a participação no processo produtivo (e, consequentemente, na distribuição do rendimento) como condição de sobrevivência; (c) depois, a necessidade de um abrigo que proporcione um mínimo de bem estar; (d) por último, a continuidade (para não dizer, a perenidade) do próprio grupo social.
v Sendo os três primeiros casos contratos, seria de prever que o legislador lhes aplicasse regras, se não idênticas, pelo menos mutuamente compatíveis, para assim garantir um clima de coerência – o que é dizer, segurança jurídica e legítima confiança.
v Quanto aos quatro casos, porque todos eles mexem fundo no tecido social, esperar-se-ia que a lei se inspirasse em princípios que não fossem totalmente contraditórios.
v E o que vemos nós?
v Vemos que o contrato matrimonial pode ser desfeito pela parte que se sinta incómoda, sem que a lei reconheça à parte passiva o direito de ser indemnizada em função das legítimas expectativas que resultarem frustradas - e sem que o legislador faça a menor referência ao princípio da protecção da parte mais débil (que assim é mandado às urtigas).
v Vemos que no contrato de trabalho só uma das partes, o empregado, o pode resolver e não sofrer as consequentes penalidades - já que o legislador entende fazer prevalecer aqui o princípio da protecção da parte mais débil (que presume ser precisamente o empregado, sem cuidar de demonstrar, circunscrever ou condicionar essa sua presunção).
v Vemos, nos contratos de arrendamento residencial por prazo indeterminado celebrados antes de o Novo Regime do Arrendamento Urbano entrar em vigor, que uma das partes, o senhorio, está objectivamente impedido de lhes pôr termo (além de ser obrigado a suportar rendas sem qualquer correspondência com a realidade dos preços e rendimentos actuais) – porque, uma vez mais, o legislador, sem esclarecer porquê, considera o inquilino a parte débil que importa proteger duplamente e ad aeternum: na inamovibilidade e no esforço financeiro.
v Vemos que na interrupção voluntária da gravidez o legislador, uma vez mais, vira as costas ao referido princípio - e deixa totalmente desprotegida a parte manifestamente mais débil, o feto.
v Vemos, pois, que em contratos sem prazo fixado o legislador, umas vezes, permite que qualquer das partes lhes ponha termo sem mais; outras vezes, só uma das partes o pode fazer sem se constituir na obrigação de indemnizar a parte contrária; e, outras vezes ainda, uma das partes, só por o ser, vê-se atingida por uma incapacidade absoluta e irremediável: a de dar por findo o contrato, indemnizando a parte passiva.
v Mas vemos mais. Vemos que o princípio da protecção da parte mais débil está longe de ter, por cá, uma validade geral, mesmo nas situações que estruturam a sociedade.
v Vemos, enfim, com total clareza, que o legislador vai talhando as leis segundo os modelos ideológicos (e as modas ideológicas) que, em cada momento, lhe vão mais a gosto. Como se a coerência da Lei não fosse, também ela, uma parte débil que só ele, legislador, está em posição de proteger.
v Com maior crueza: por cá, legisla-se, sem o menor pudor, para amigos, apaniguados e adeptos. É esse o princípio costumeiro que faz de nós a causa maior do nosso atraso.
Agosto de 2008