Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

A bem da Nação

LIDO COM INTERESSE – 32

 

F. Kafka statue 
Monumento a Franz Kafka frente à Sinagoga espanhola em Praga
 
 
 
Título: CARTA AO PAI
 
Autor: Franz Kafka
Tradutora: Maria Lin de Sousa Moniz
Editor: Relógio D’Água
Edição: Março de 2004
 
 
Hermann Kafka, o pai, o nome da culpa. Eis um título alternativo para este livro.
 
Talvez tenha sido nos meus tempos de liceu que adquiri a ideia de que a escrita kafkiana era muito confusa porque traduzia ideias confusas. Assim foi que associei o imbróglio a Kafka e por isso me mantive afastado dessas leituras. No meio de tanta coisa a necessitar de esclarecimento, não tive tempo a perder à procura de mais confusões. Nesse afastamento me mantive durante mais de 40 anos. Até que passei a ser dono do meu tempo. Mais: até que me convenci de que educação se pode assemelhar a instrução adjectivada. E talvez tenham sido alguns adjectivos que me fizeram chegar junto de uns e a afastar-me de outros autores.
 
Mas é claro que os meus pais me puseram num liceu caro, o francês, para que eu tivesse um certo tipo de educação e não aquele que, gratuito, era ministrado no ensino público. A adjectivação fazia sentido; nem todos os adjectivos terão sido justos.
 
Essa injusta adjectivação descobri-a há tempos aplicada ao compositor português Ruy Coelho e acabo de a descobrir agora em relação a Kafka, pelo menos no que se refere a esta minha primeira leitura que dele faço.
 
Logo de início fiquei espantado com a clareza da escrita: nada confusa, ao contrário do que eu imaginava. E foi por causa dessa clareza que, do simples folhear e da leitura desprendida da contracapa na livraria, passei a vias de facto.
 
Com as dimensões de um livro-de-bolso e apenas 70 páginas de texto, não impressiona pelo tamanho; reserva-nos para a qualidade da escrita. Não podendo qualificar a tradução por desconhecimento do original, apenas afirmo que o resultado é bom.
 
Ao longo da leitura fui imaginando outros títulos para o livro e por várias vezes me ocorreu a palavra «besta». Por uma ou outra vez me lembrei de «boçal» mas tive que arrepiar caminho porque logo de seguida era levado a pensar que só com alguma cultura se pode assumir um determinado tipo de atitudes que tem a ver com a rejeição de posições eruditas. E a rejeição da erudição pode não ser boçalidade mas traduzir apenas um conflito de personalidades. E é precisamente a isso que somos conduzidos: a um inultrapassável conflito de personalidades entre pai e filho, sendo aquele o alfa e este o ómega.
 
Todas as frustrações do filho imputadas à dominação, irritação e desprezo do pai que era homem de negócios e não aceitava as preocupações filosóficas como algo que pudesse alimentar uma família. Pai pragmático na angariação de meios de subsistência para o seu agregado familiar, não condescendia com opiniões alheias, as que considerava sempre erradas, supérfluas ou apenas diletantes; filho desejoso de mostrar ao pai que não era assim tão inútil quanto ele o pintava.
 
E este desejo de sublimação de todos os complexos de inferioridade que o filho assume mas de cuja existência culpa a tirania paterna, é o cerne da carta que deveria ter estabelecido o elo tardio de ligação entre ambos e que... a mãe sonegou ao pai.
 
E para proteger ambos, a mãe não lhes permitiu que se conhecessem.
 
«Claro que não quero dizer que aquilo que sou se deve apenas à tua influência. (...) É bem possível que, mesmo que tivesse crescido completamente fora da tua influência, não conseguisse vir a ser um indivíduo a teu contento. (...) como pai foste forte de mais para mim (...)»
 
E quase no final, o filho dá ao pai a contra argumentação de todas as acusações oferecendo-lhe a racionalidade que sempre ignorara: «(...) tornas pelo menos as coisas, não mais difíceis, mas muito mais vantajosas para ti. Primeiro, declinas qualquer culpa e responsabilidade da tua parte e nesse caso procedemos da mesma forma. Mas enquanto eu depois, com a mesma franqueza de pensamento, atribuo todas as culpas a ti, tu pretendes ser, ao mesmo tempo, muitíssimo “sensato” e muitíssimo “afectuoso” e absolver-me de qualquer culpa. (...)»
 
Arrogante, o pai nunca se humilharia a dialogar com quem desprezava – a mãe deveria saber muito bem o que fazia quando sonegou a carta à leitura do marido – mas o filho não perde a esperança e conclui a carta com um apelo que obviamente ficou sem resposta: «É claro que as coisas podem não se ajustar na realidade como as provas que apresento na minha carta, a vida é mais do que um jogo de paciências; mas com a rectificação resultante desta resposta, uma rectificação que não posso nem quero prosseguir em detalhe, aproximou-se, em minha opinião, tanto da realidade que poderá proporcionar algum sossego e facilitar, a ambos, a vida e a morte.»
 
Um livro que deveria ser lido por muitos pais e por muitos filhos, antes que seja tarde.
 
Tavira, Agosto de 2008
 
Henrique Salles da Fonseca

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2014
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2013
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2012
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2011
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2010
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2009
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2008
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2007
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D
  248. 2006
  249. J
  250. F
  251. M
  252. A
  253. M
  254. J
  255. J
  256. A
  257. S
  258. O
  259. N
  260. D
  261. 2005
  262. J
  263. F
  264. M
  265. A
  266. M
  267. J
  268. J
  269. A
  270. S
  271. O
  272. N
  273. D
  274. 2004
  275. J
  276. F
  277. M
  278. A
  279. M
  280. J
  281. J
  282. A
  283. S
  284. O
  285. N
  286. D