Curtinhas nº 59
Com a verdade me enganam
v As voltas que a vida vai dando só agora me permitem concluir a série de comentários sobre a situação que se tem vivido por cá nos preços dos combustíveis rodoviários (vulgo, gasolina e gasóleo).
v A Autoridade da Concorrência (AdC), entretanto, publicou sobre este assunto dois documentos (um longo Relatório e a Newsletter n.º 19) nos quais é evidente a preocupação de coligir e organizar o máximo da informação disponível, quer sobre o enquadramento legal do negócio de refinação e distribuição de combustíveis em Portugal, quer sobre dados estatísticos domésticos e internacionais. Questão resolvida, ponto final? Nem por sombras.
v Continuaram, e continuam ainda, sem resposta as perguntas fulcrais no debate que a recente alta de preços veio desencadear. Como se tivesse havido a preocupação de passar de largo, de as contornar, mantendo-as longe da vista através de uma pesada cortina de informações cujo propósito seria desviar as atenções e, em simultâneo, deixar a sensação de que o problema tinha sido exaustivamente tratado.
v Há, de facto, muito de academismo naqueles documentos, tanto na abordagem descritiva, como na escolha dos indicadores estatísticos – e só ficou a faltar mesmo um ajustamento econométrico e alguma matemática sofisticada para que os cânones da boa tese universitária tivessem ficado totalmente preenchidos.
v E, afinal, o que havia a esclarecer era bem simples:
(a) Serão os preços CIF Roterdão, adoptados pela GALP, e seguidos pelas restantes distribuidoras, um bom indexante para os preços no mercado interno?;
(b) Sob que condições a actual estrutura do mercado de combustíveis rodoviários será compatível com um ambiente de razoável concorrência?;
(c) Como fazer para que os preços no retalho reflictam com fidelidade, em todas as circunstâncias, as variações registadas pelo indexante escolhido?
v Não molestou a AdC que o indexante há muito adoptado por todas as distribuidoras (facto que é do conhecimento público) fosse um preço CIF – ou seja, um preço que inclui, além do custo industrial, do custo da armazenagem e da margem de lucro do produtor/vendedor (suficiente para cobrir as perdas esperadas em quebras e incobráveis), também o custo do frete (no caso, frete marítimo) e o prémio do seguro de transporte até ao local de destino (Roterdão).
v Ora, quando as distribuidoras vendem no mercado interno não têm de suportar o custo do transporte marítimo até Roterdão, nem o respectivo prémio de seguro. Mas, por outra parte, como a AdC claramente descreve, adicionam aos preços CIF Roterdão as despesas com a entrega nos postos retalhistas. O que é dizer: somam dois custos de transporte (e dois prémios de seguro) que não correspondem à movimentação real do produto – e transformam uma dessas parcelas (por acaso a maior delas) em sobre-lucro.
v O indexante poderia ser o preço do próprio crude numa qualidade de referência, ajustado para a qualidade que a GALP (só esta tem refinarias em território português) habitualmente refina – e, aí sim, CIF Roterdão (por não haver dados publicados, fidedignos e comparáveis, sobre preços CIF Sines, ou CIF Leixões, de crude). Mas, se assim fosse, a GALP estaria a repercutir no consumidor eventuais ineficiências na condução das suas duas refinarias (Sines e Matosinhos).
v Melhor seria que o indexante fosse construído a partir dos preços ex-works (à saída da refinaria) das gasolinas e do gasóleo em refinarias de referência. Só que esses preços também não são objecto de divulgação. O que mais se aproxima deste indexante ideal é o preço net back – ou seja, o preço CIF Roterdão, ao qual teria de se deduzir: o custo do frete marítimo Sines/Roterdão e o correspondente prémio do seguro de transporte marítimo.
v Estranhamente, passou despercebido à AdC que são frequentes os swaps de produto no mercado do petróleo e derivados. Num swap quem fornece de facto não é quem factura – e, assim, todos os produtores intervenientes poupam custos de logística.
v Por isso, em Portugal, a quota da GALP nas quantidades de combustíveis rodoviários (sobretudo, a gasolina) consumidas é superior àquela que resulta das estatísticas de vendas (facto a que a AdC não prestou a menor atenção). Isto significa que só estão abertas à concorrência as componentes “lucro bruto na distribuição ao retalho” e “lucro bruto do retalhista” – ou seja, nem 20% do preço final antes de impostos. Seria grande ingenuidade esperar que a concorrência em campo tão estreito fosse visível nos preços finais – mas a AdC parece acreditar que sim.
v Num mercado com tal estrutura, como é possível evitar que se formem cartéis de facto, com um líder – e todos os restantes fiéis e satisfeitos seguidores? Simples: contratualizando a regra de formação de preços.
v Cada distribuidora será, então, livre de escolher a regra que melhor lhe pareça, desde que essa regra satisfaça os seguintes dois requisitos:
(a) O indexante ser pertinente – isto é, ter a ver com os mercados internacionais do crude e dos seus derivados;
(b) A regra ser simétrica – para variações do indexante iguais em valor absoluto, mas de sinal contrário, as correspondentes variações no preço de um qualquer dos combustíveis rodoviários são também iguais em valor absoluto, embora com o sinal trocado.
v Com esta regra, vigiar em tempo real (e, não, com meses de atraso, como hoje acontece) pelo efectivo primado da concorrência que aproveite ao consumidor estará ao alcance de qualquer um. Não ocorreu à AdC. Fica para a próxima. (FIM)
Lisboa, Agosto de 2008
A. PALHINHA MACHADO