Curtinhas nº 55
GUARDEM AS PRATAS!
v A ERSE, definitivamente convertida em Regulador com ideias, está a ventilar a hipótese (por enquanto, nada mais que uma hipótese) de as facturas de energia eléctrica (EE) passarem a incluir também uma parcela que dê para os incobráveis.
v A ideia, agora, é partir de uma tarifa “limpa” (uma tarifa que cubra os custos da produção e distribuição de EE mais uma remuneração decente para os accionistas do fornecedor) e adicionar-lhe um tanto ainda por determinar, de tal forma que o apuro efectivamente cobrado coincida sempre, mês após mês, com a tal tarifa “limpa”.
v Remuneração decente para os accionistas? Eu escrevi “remuneração decente para os accionistas”? Mas a taxa de retorno dos Capitais Próprios depende inevitavelmente de um sem número de factores aleatórios - um dos quais é, precisamente, a possibilidade de alguns créditos não serem cobrados (o risco de crédito). Como fixar assim, do pé para a mão, antes de tudo mais, uma remuneração decente para os accionistas?
v Faz sentido, sim, falar de taxa de retorno esperada para os Capitais Próprios, um parâmetro de decisão. Só que - para estimar este parâmetro há que tratar, primeiro, da incerteza quanto a cobranças (além de outras incertezas). Tudo em termos estatísticos, naturalmente.
v Agora, este modo de lidar com a questão, empilhando em cada factura parcela sobre parcela, como se estas parcelas surgissem independentes umas das outras, não tem ponta por onde se lhe pegue. Mas é um bom exemplo da “mentalidade de contabilista” (com a devida vénia para os contabilistas) tão frequente entre nós, a qual presume que tudo é dado, certo, conhecido - e, por isso, susceptível de ser somado de trás para a frente ou de frente para trás. Melhor, que tudo se resume a uma aritmética simples.
v Mas o fundo da ideia até se compreende. Afinal, quem vende laranjas forma o seu preço entrando logo em linha de conta com aquelas que, entretanto, se estragarem (mal irá se não o fizer); quem empresta dinheiro inclui também no juro uns pós que reflictam a proporção dos créditos que não vai conseguir cobrar; os prémios de seguro contêm já um tanto mais para atender às indemnizações que a seguradora, fatalmente, irá ser chamada a pagar; as taxas de imposto, mesmo essas, seriam talvez mais baixas se não houvesse por aí uns contribuintes a fintarem o Fisco (pelo menos, é este o argumento de qualquer Ministro das Finanças que se preze).
v Tudo está em saber o que é que vai ser adicionado nas facturas para atender aos tais incobráveis. Porque, se a ERSE deixar correr o marfim, o mais certo é o fornecedor de EE desleixar-se no esforço de cobrança, na selecção dos clientes e, pior ainda, na maneira como lida com devedores pouco dados a boas contas.
v Se ele acaba sempre por receber tudo aquilo que fornece, será que corta prontamente o fornecimento a quem não pagar? E, bem vistas as coisas, será que, nestas circunstâncias, se justifica manter um serviço de cobranças sempre custoso?
v Seria bom que, na eventualidade, a ERSE se aconselhasse com a teoria do risco. E a teoria do risco lhe diria que a perda esperada (sublinho, perda esperada, ex ante, não perda verificada, ex post) deve ser incluída no preço (o que se designa tecnicamente por cobertura horizontal da perda) e que pela perda não esperada devem responder os Capitais Próprios do credor.
v Em linguagem corrente: dos créditos que ficarem por cobrar, o bolso dos clientes suportará, no preço da factura, a incobrança esperada - e o resto terá de sair dos bolsos do credor.
v Ao incluir a perda esperada no preço (no caso, a tarifa de EE), o fornecedor está a agir como se fosse a seguradora dos riscos a que os seus próprios negócios o expõem (auto-seguro, portanto). E como terá de deduzir aos seus Capitais Próprios o valor incobrado que exceder a perda esperada, ele, fornecedor, é incentivado a subir a parada, colocando a estimativa da perda esperada o mais alto possível – para que sejam os clientes a tudo pagar logo na factura.
v Quando o mercado é competitivo, um módico de regulação bastará para trazer a estimativa da perda esperada até níveis mais razoáveis – isto é, mais em linha com o risco de crédito a que se encontra exposto um qualquer credor medianamente diligente. O busílis é que, em Portugal, o mercado da EE a retalho está, e estará ainda por muitos e bons anos, nos antípodas do que seja um mercado competitivo.
v Uma possibilidade seria introduzir no esquema um terceiro, uma seguradora de crédito, que tivesse também que afectar Capitais Próprios às indemnizações acima do esperado que fosse chamada a pagar. Mas, também aí, o incentivo ao conluio, à custa do cliente, não deixaria de marcar presença.
v O ideal seria que a ERSE dispusesse de estatísticas fiáveis sobre as taxas de incobrança numa pluralidade de sectores económicos, designadamente, nas utilities, contratualizando com o fornecedor da EE o prémio de risco de crédito a incluir nas facturas.
v Hélàs! Não dispõe - porque nós, portugueses, nunca fomos muito dados à recolha e ao tratamento da informação que, na realidade, interessa. Propendemos mais para o parece-que, o diz-que-disse e a má-língua.
v Por outra parte, a ideia com que a ERSE tem vindo a cismar também não é de todo desagradável para quem esteja no Governo. Se tudo for deixado ao sabor do vento, eis um modo fácil e indolor de melhorar um pouco as condições de vida dos mais pobres, fornecendo-lhes EE que eles nunca vão pagar (isto é, EE à borla), sem sobrecarregar o depauperado OGE. O que, bem vistas as coisas, tem o seu quê de justiça redistributiva, desde que o adicional para incobráveis seja proporcional ao valor da EE consumida e facturada.
v Mais assim ou mais assado, o cliente acabará sempre por pagar. E pagará mais se a ERSE não fizer a menor ideia do que por aí corre em matéria de cobranças, eficácia de cobrança e risco de crédito.
Lisboa, Junho de 2008