Curtinhas nº 53
É pagar e rezar - II
v Desde há anos que o terreno nos mercados do crude (o mercado à vista e os mercados a prazo) está coberto de restolho. Restolho que alguns Bancos Centrais (com o FED à cabeça) têm vindo a aspergir com o material mais ígneo que se conhece: a liquidez.
v Mas foram os capitais que não cessam de afluir ao mercado, e a pressão cada vez maior sobre os investidores institucionais para que apresentem taxas de retorno decentes, a chama que pôs tudo aquilo a arder. Uma fogueira que arderá até consumir liquidez, capitais e poder de compra.
v Para perceber o que se passa por cá, é conveniente conhecer um pouco da economia do petróleo. Quatro tópicos bastam:
v A refinação do crude é um processo de co-produção de onde saem, inevitavelmente, como que de braço dado, “voláteis” (etano, propano, etc.), “naftas” (gasolinas, etc.) e “pesados” (gasóleo, thick fuel, asfaltos) – e, por vezes, um sub-produto residual (o coque de petróleo);
v O tipo de crude determina o peso relativo dos co-produtos no refinado (peso relativo esse que se designa por “composição do barril”);
v Não é frequente as refinarias, principalmente as mais antigas, poderem processar todos os tipos de crude disponíveis no mercado (por exemplo, a refinaria de Sines, nos seus primórdios, não podia refinar o crude de Cabinda, por ser demasiado “pesado” - o que diz bem da qualidade dos nossos planeadores encartados);
v Enfim, a gestão de uma refinaria pode fazer variar o peso relativo dos seus co-produtos, mas sempre dentro de limites particularmente estreitos – limites esses completamente determinados pela composição do barril que estiver a ser refinado e pelas características técnicas dos equipamentos existentes.
v E cá vai mais uma das nossas muitas singularidades. A gestão das refinarias portuguesas há muito que tem de atender ainda a uma terceira condicionante: a política fiscal.
v O paradoxo arrepia, mas ninguém parece preocupado: (1) no mercado internacional, o gasóleo, por ser mais escasso, é mais caro do que as gasolinas; (2) nós, porém, importamos gasóleo e exportamos gasolinas, não porque a capacidade de refinação instalada seja insuficiente, mas porque não existe tancagem que dê para armazenar as gasolinas co-produzidas, que o mercado interno não absorve e que o mercado externo, aliás, paga mal; (3) o mercado interno prefere o gasóleo à gasolina porque esta, cá dentro, é tradicionalmente mais cara; (4) e é mais cara, não porque custe comparativamente mais produzi-la (na realidade, até custa menos), mas porque suporta uma carga fiscal superior à do gasóleo. Nisto estamos.
v No tempo dos combustíveis tabelados, o preço de referência do crude para refinação era obtido através de uma fórmula em que uma das parcelas reflectia o custo do transporte por mar. Que todo o crude provinha do Golfo Pérsico pressupunha a fórmula – e era com base no custo do frete Golfo Pérsico/Roterdão que as contas se faziam.
v Só que – o grosso das importações de crude não vinha de tão longe, nem fazia tão longa viagem. Como é bem de ver, nem a fórmula, nem os preços tabelados se preocuparam alguma vez com semelhantes detalhes.
v Vemos assim que a manipulação mais grosseira de todas as parcelas que formam o preço final dos combustíveis tem, entre nós, direitos adquiridos. E que um dos dedos mais manipuladores e atrevidos é justamente o do Fisco.
v A gasolina que se consome hoje em Portugal é, na sua maior parte (uns 90%), produzida e fornecida pela GALP, que abastece, quer a rede de retalho própria (diz-se “sob embandeiramento próprio”), quer os restantes distribuidores. Estes, por sua vez, colocam-na nos postos que têm sob o seu embandeiramento.
v Apesar de, em determinadas épocas do ano, o preço das gasolinas no mercado internacional alinhar pelos custos varáveis de produção, os distribuidores (não a GALP, obviamente) não aproveitam desse facto por quatro ordens de razões: (1) não existe, por cá, tancagem livre suficiente; (2) o mercado potencial de cada distribuidor, na presença da GALP, não justifica o investimento em tancagem própria; (3) a dimensão do mercado interno, com a estrutura actual, também não justifica que eles se ponham de acordo para investir num parque de tanques comum; (4) tente o Leitor, julgando ver nestes distribuidores apetecíveis clientes “naturais”, explorar o negócio da tancagem logística de combustíveis.
v E com o gasóleo é igual, apesar de a componente importada ser um pouco maior.
v Só um legislador em delírio é que poderia acreditar que de uma tal estrutura de mercado brotasse um ambiente de concorrência exemplar. Quando, para todos os efeitos, existe um só fornecedor, a cartelização é uma fatalidade, não uma tramóia.
v Tradicionalmente, as refinarias formam os preços dos refinados tendo por base o preço de reposição dos seus stocks de crude – e daí não virá mal ao mundo. A concorrência nos mercados dos refinados estabelece-se, então, em torno: (1) da composição do barril que cada refinaria processar; (2) das condições técnicas de refinação; (3) do maior ou menor acerto no peso relativo de cada co-produto; e (4) do maior ou menor controlo sobre os custos (aprovisionamento, produção e logística).
v Variáveis bastantes para gerar um clima de sã - mais do que sã, aguerrida concorrência nos mercado mundiais do crude (e dos refinados) e para fazer surgir mercados financeiros eficientes, onde são transaccionados activamente instrumentos que têm subjacente o crude (e vários dos seus refinados).
v Visto tudo isto, creia-me Leitor que no meio do bruá-á que por aí vai, só duas questões merecem ser debatidas:
v Como assegurar a transparência dos preços finais num mercado pequeno e com um só fornecedor (as importações são marginais)?
v Como vigiar para que a regra do preço de reposição seja escrupulosamente cumprida em todas as circunstâncias – e não apenas quando convém a esse fornecedor?
v O mais é só fumaça...Erre-se numa qualquer, numa só destas duas questões (e eu aposto que vem aí uma das tais respostas astuciosas que deixam tudo na mesma) e só em Eça encontraremos refúgio e consolo:
O povo paga e reza. Paga aos que o exploram e reza aos que o enganam.
Lisboa, Maio de 2008
A. PALHINHA MACHADO