Curtinhas XL
Fat Cats
v ...E lá veio mais uma cena de ópera buffa para abrilhantar a festa. Agora, foi a surpresa indignada com os gordos cheques que deslizam, mês após mês, para os bolsos dos nossos mais apreciados gestores. Com a indignação vieram à tona umas quantas realidades que temos querido ignorar. Aqui vão elas:
v Que os nossos governantes assumem com galhardia o papel de sátrapas em terra distante: sem ideias próprias, executam gostosamente tudo o que o centro (leia-se, UE) dita.
v Foi agora, de um momento para o outro, que os cheques-surpresa começaram a ser preenchidos com mais uns zeros? Qual quê - a prática é, de há muito, corrente. Mas como foi agora que a UE começou a tocar música, é agora que eles, os que nos governam, ensaiam o seu pé de dança.
v Que os visados se têm em muito boa conta, além de serem almas sensíveis que qualquer grãozinho de crítica ofende.
v Só os mais desatentos se espantarão com tamanha sensibilidade. Mesmo quem passeia um olhar distraído pelos media, verdadeiras passerèlles de vaidades, reconhece nos nossos gestores seres fadados para os mais altos cometimentos – e as maiores recompensas.
v Que os visados, toldados pela afronta, não conseguem articular uma resposta sensata.
v Se conseguissem, veriam que melhor teria sido permanecerem olimpicamente discretos.
v Quando tanta indignação tinha, afinal, uma resposta tão simples que, à parte os visados, não houve quem não desse com ela: este é um assunto do foro exclusivo dos accionistas. Afinal, sempre são os accionistas a pagar. Indirectamente, é certo - e, por vezes, sem saberem muito bem o que estão a fazer.
v Que os nossos gestores têm de ser bem pagos, caso contrário, ei-los a abalar para o estrangeiro onde farão valer melhor os seus tantos e tão variados talentos.
v Assim será para uns quantos, mas a grande maioria deles que não se ofenda: vivem para fazer ofício de corpo presente, compor a fotografia ou traficar influências nos corredores do poder - e nada disto é facilmente exportável. Até porque, por franças e araganças, essa oferta também abunda - e por lá estariam como peixe fora de água.
v Aqueles quantos que, certamente felizes, “dessem o salto” aprenderiam de pronto o que é, na realidade, ser gestor: ter de prestar contas, com incómoda frequência, a uma assembleia de accionistas peritos em perguntas difíceis e que não vão em lérias; ter de apresentar trabalho em mercados onde competir não é uma palavra vã e o cartão do partido não serve, nem como credencial de desempenho, nem como apólice de seguro de boa vida; ser despedido de um dia para o outro, sem grandes contemplações; enfim, receber invejáveis salários e prémios de espantar, mas trabalhar, trabalhar muito – e sempre sem rede.
v Uma vez mais, e para não variar, a política cá da terra inspira-se na inveja, não na procura da eficiência e do bem-estar. Já se sabia que, entre nós, toda a política fiscal (e muita da restante política) tem por musa a inveja mais mesquinha. O que, talvez, não esperássemos é que a UE navegasse nas mesmas águas. Somos, de certeza, os europeus mais relapsos - mas é connosco que a burocracia de Bruxelas, afinal, sonha!
v Se algo está mal em tudo isto, não é nos gestores principescamente remunerados – é nos accionistas. São eles que não sabem, ou não querem, incomodar os seus gestores com perguntas incómodas; são eles que se contentam com qualquer resposta, por mais disparatada; são eles que fingem que não vêem, que toleram, que dão cobertura quando não promovem eles próprios o conflito de interesses em que os gestores tantas vezes se comprazem; são eles que nunca perdem a esperança de sacar uns trocos à custa dos restantes accionistas, para o que necessitam da cumplicidade dos gestores.
v Mas não só. O modo pouco transparente como Governo e Administração Pública actuam no mercado é, também, para tantos dos gestores agora beliscados, uma garantia de sucesso – ou a esperança de sucessos futuros. Pois não é que o caminho se encontra tão bem assinalado?
v E a política fiscal também dá a sua ajuda a este estado de coisas. Quando os dividendos são objecto de uma dupla tributação (primeiro, no património da empresa que os distribui; seguidamente, no património do sócio que os recebe), o accionista racional só pode ser aquele que está seguro de que o ganho não virá dos dividendos, mas do que possa ser obtido “por dentro” - e na valorização que o relacionamento, mais ou menos estreito, com o aparelho do Estado permitir. Em curtas palavras: pelas mãos dos gestores, mas a bom recato.
v Se o Ministro das Finanças soubesse do que fala e quisesse agir como diz, começaria por dar força aos sócios (e accionistas) minoritários, para que fossem eles, demasiado distantes dos gabinetes dos gestores, a lançar as tais perguntas difíceis, a exigir respostas claras, a vigiar para que nenhum sócio com posição qualificada aproveitasse à custa dos restantes.
v Para tanto, bastaria ao senhor governante: (a) instituir a neutralidade fiscal perante todas as formas de financiamento das empresas (capitais próprios versus capitais alheios) – medida com efeitos “macro” muito superiores aos da descida de 1% na taxa do IVA; (b) fazer prevalecer a qualidade da informação financeira divulgada pelas empresas, da maior à mais “mesquinha” (como diria o nosso Fernão Lopes)
Lisboa, Maio de 2008