ACORDO ORTOGRÁFICO – 1
- Oh vizinha Rosa! Dá-me um pezinho de salsa do seu canteiro?
- Pois não, vizinha D’mitília. Tenho muito prazer… e da próxima é a vizinha que me dá uma colher de açúcar.
* * *
- Então, Zé! Ouvi dizer que deixaste de beber vinho e te passaste p’ró chá de tília?
- Sim, sim! ‘Tá-se mesm’a ver não ‘tá-se?
* * *
Engenharia linguística complicada, esta que se usa em português quando para se dizer «não» se diz «sim» e para se dizer «sim» se diz «não». Compreende-se que qualquer estrangeiro com menor luso-folgança se sinta atordoado no meio de tais sentidos idiomáticos.
Contudo, o Acordo Ortográfico ora em processo de ratificação parlamentar a nenhuma questão deste estilo se refere pelo que a confusão idiomática continuará. E compreende-se que um documento que se debruça sobre questões ortográficas nada refira quanto ao sentido das expressões.
Em terminologia actual, a língua é o conteúdo e a ortografia o programa que deve ser instalado no hardware. O hardware somos nós, os falantes. Só que somos de marcas diferentes e o documento em discussão pretende tão só compatibilizar-nos.
Assim, com a discussão entre linguistas catedráticos e outros escolásticos superiores, o documento pretende fazer de modo erudito aquilo que todos nós fazemos empiricamente: entendermo-nos. E ao longo da História o entendimento foi a tal ponto que proliferaram os mulatos e outros mistos conforme as latitudes por que nos pavoneámos. E esse entendimento foi fácil porque nós, os colonizadores de alma lusa, não tínhamos um tão elevado nível médio de erudição que nos impressionasse a chega às gentes colonizadas a quem alguns chamavam selvagens. E nós éramos mais sofisticados? Talvez menos, até porque entretanto estávamos voluntariamente desenraizados ou isso mesmo mas à força: degredados.
E foi com base na via mais popular – e quantas vezes “a ferros” – que a língua portuguesa se disseminou por aí além… Os escolásticos menos que isso fizeram pois ficaram em Portugal, nas capelas e a perorar ex-cathedra.
Fará algum sentido tratar com real ou pretensa erudição um modo de comunicação de origem vincadamente popular? Mais: num mundo como o lusófono flagelado pelo analfabetismo adulto, que importância tem a discussão de subtilezas da sintaxe, do til, do hífen e do «h» mudo?
Temo que tudo isto não passe de mera bexiguice para o comum dos mortais lusófonos que continuarão a entender-se como desde o tempo em que os primeiros navegadores se fizeram ao mar oceano nos idos do séc. XIII, já vai para 800 anos…
E assim como a rádio e a televisão vieram dar algum sentido de unidade aos diversos falares locais e regionais dentro dum mesmo país, também hoje a Internet esbateu as distâncias e eu próprio – que estou em Lisboa – me contacto instantaneamente com amigos brasileiros, portugueses, africanos nas duas costas, goeses e cingaleses. É este contacto que esbate as diferenças e eu não estou de facto minimamente preocupado em saber se os meus amigos do Brasil usam um fato ou um terno, se os de Moçambique empurram ou chovam um carro que se avariou e se o amendoim do Algarve se chama alcagoita. Nada disto é grave. Pelo contrário, é riqueza. E esta riqueza linguística deve ser aproveitada, não neutralizada e de maneira nenhuma anulada. Quando todos comunicarmos com todos – como só agora começa a ser tecnicamente possível – o entendimento será mais fácil, os pontos de vista tenderão a uniformizar-se assim como os modos de expressão. E mais uma vez a língua e a sua expressão impressa se desenvolverá e uniformizará com a naturalidade que só os povos sabem fazer.
Está-se mesmo a ver que vingará a via popular em detrimento da erudita saindo vencedor quem colocar mais telenovelas no ar. Cá pelo meu lado, hardware me confesso, informo que estou programado há 60 anos de um modo que não tem revelado grandes males e, portanto, vou continuar nele. Decretem Suas Excelências o que muito bem entenderem.
E, para concluir, um aroma no moderno esperanto: toda a sofisticação que se está a querer dar ao assunto cheira a lobby.
Lisboa, Abril de 2008
Henrique Salles da Fonseca