PÁGINAS SIMPLES DE DOMINGO - 1
PEDRAS QUE FALAM
Há dias, estava eu a tomar um café e a comer um rissol quando a Polícia Municipal chegou com o reboque para a remoção de carros mal estacionados. Logo levou um que se encontrava com duas rodas sobre o passeio frente ao bistro em que eu me encontrava. Ainda não tinham – reboque e rebocado – passado a esquina lá ao fundo da rua e já dois carros disputavam o lugar de que o anterior tinha sido removido. Foi necessário o cavalheiro que, ao meu lado, estava de pé ao balcão dizer-lhes o que tinha acabado de acontecer para seguirem com a discussão para outro lugar. Ou seja, nesta cena tão breve quanto profana, houve quem contasse a história mas dá para imaginar a ignorância de todos aqueles que passam sobre as pedras da rua sem imaginarem o que por ali mesmo se passou há pouco ou há muito. E se há episódios que podem ser importantes para os interesses imediatos dos incautos – a Polícia Municipal voltar ali para continuar a rebocar carros mal estacionados – outras situações haverá cujo conhecimento nos pode dar um grande sentido de responsabilidade pelos passos que damos sobre certas pedras.
Saber que nos encontramos no local exacto em que o Rei D. Dinis perguntou à Rainha D. Isabel o que levava no regaço tendo ela respondido que «São rosas, Senhor», que foi daquele preciso local que D. Nuno Álvares Pereira assistiu ao fecho da abóbada do Convento do Carmo e que uns séculos mais tarde dali mesmo o Capitão Salgueiro Maia desmoronou o Império, que ali, naquela sala do castelo de Palmela, o Rei D. João II apunhalou o Duque de Viseu, saber que foi sob aqueles arcos do seu Paço sobre a foz do Tejo que o Rei D. Manuel viu a armada de Vasco da Gama zarpar para a Índia e que naquele outro arco estava a porta que entalou Martim Moniz…
«São rosas, Senhor»
Pisar essas pedras dá-nos uma certa solenidade, um verdadeiro sentido de responsabilidade histórica. Isso mesmo senti quando espalmei uma mão sobre as pedras do Forte d’Aguada em Goa e imaginei o que elas “viram” antes de eu ali chegar… Não somos nós que somos importantes por ali estarmos naquele lugar; apenas nos enforma o sentido do respeito histórico, cultural. E imaginamos…
Imaginamos o vazio daqueles que ignoram o que se passou e, pior ainda, o deserto mental daqueles que nem sequer querem saber.
Mas cheguei à conclusão de que, felizmente, as pedras são inertes.
Imagine-se o que seria se elas reagissem a estímulos. Devia ser um tremor constante com algumas a saltar mais que outras conforme o que cada uma tivesse “visto”. Haveria mesmo as que levitariam.
O que aconteceria às calçadas de Lisboa por que passaram Camões e Herculano quando fossem pisadas por analfabetos boçais e bêbados de destino incerto?