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A bem da Nação

O QUE TORTO NASCE . . . (1)

Decidiu em 2004 o Governo alterar o regime de rendas urbanas.
Datam dessa época os textos que o Dr. António Palhinha Machado fez publicar na Imprensa.
Parece conveniente refazermos essa leitura para que possamos melhor compreender um processo que no tempo do Doutor Salazar nasceu torto.


AGORA, SIM, VAMOS SER A INVEJA DA EUROPA – I


Anuncia-se, com pompa e circunstância, a reforma do regime do arrendamento urbano. Visto o que veio a lume (versão datada de 28SET2004), este pacote legislativo (sete diplomas) descreve-se em quatro curtas frases: intenções – excelentes; soluções – de valor desigual; sistematização – será que existe?; redacção - deplorável. Vamos por partes.

É preocupação declarada do legislador:

(i) inverter a degradação do parque habitacional, sobretudo nos centros urbanos;

(ii) derrubar os obstáculos que entravam a mobilidade geográfica da mão-de-obra;

(iii) dar mais eficiência ao mercado imobiliário, através do reforço da vertente "arrendamento";

(iv) enfim, pôr um ponto final na distorção urbanística, cuja causa ele atribui por inteiro ao congelamento das rendas urbanas, velho de muitas décadas.

Quisesse ele ter ido mais fundo e haveria boas razões para acrescentar a este rol de malefícios:

(v) os fluxos de trânsito que entopem, dia após dia, pendularmente, os acessos às principais cidades do país;

(vi) o peso do crédito à habitação nos balanços dos bancos portugueses - tornando-os particularmente expostos aos efeitos da conjuntura económica no mercado do trabalho;

(vii) as negras perspectivas sobre o financiamento dos esquemas de previdência;

(viii) o caos urbanístico que entre nós se instalou quase por todo o lado.

Mas, se reflectisse um pouco melhor, veria que outras causas e algumas bem mais influentes, têm concorrido também para muito do mal que se leva à conta do congelamento das rendas urbanas - causas essas que vão da fiscalidade ao modelo de financiamento das autarquias locais, da imperfeição do quadro legal à falta de regulação e, até, à tradição (jurídica, bem entendido) tão portuguesa de conferir à administração pública, seja poderes discricionários sem o correspondente dever de vir a público para explicar como os exerce, seja regimes de excepção mais suaves do que aqueles a que o cidadão comum está sujeito. Ora, quanto a isto, o legislador, ou nada diz, como se nada soubesse, ou persiste em tratar a Administração Pública com a benignidade do costume.

O congelamento de rendas urbanas tem produzido, certamente, efeitos nefastos que ferem a sensibilidade de muitos, causam transtornos diários a tantos e diminuem a qualidade de vida de todos nós. Mas a terciarização do miolo das grandes cidades não é específica de Portugal. E o entrave à mobilidade geográfica crispa mais os ânimos na função pública que no sector privado. Tão-pouco, o caos urbanístico que, a partir dos anos 60, caracteriza as coroas exteriores das nossas urbes pode ser visto como o fatal desenlace de um regime (de rendas urbanas) aberrante – basta olhar com olhos de ver para qualquer zona turística. Os factos são outros: proibiu-se que as rendas nominais (isto é, expressas em moeda corrente) acompanhassem a evolução geral dos preços – apesar de ter havido, entretanto, vários surtos inflacionistas de grande amplitude; proíbiu-se que os senhorios, movidos apenas pelo seu interesse legítimo, pusessem fim aos contratos de arrendamento; em contrapartida, tratou-se com generosidade a transmissão da posição contratual de inquilino – o que tornou possível que um mesmo arrendamento se estendesse por anos sem fim, fosse qual fosse a vontade do senhorio. Mais do que manter um regime legal contra os senhorios – como o legislador, a dado passo, escreve em abono da sua iniciativa – o que se fez foi política à custa dos senhorios, sem que ninguém aparecesse a prestar contas pelo que estava a acontecer. E quando alguém timidamente recordava que um direito constitucional é um rumo para a organização social, cujo custo haverá que repartir por todos (na proporção das respectivas posses) – os sucessivos poderes políticos assobiavam baixinho e mantinham a cómoda passividade que melhor lhes convinha.

Surpreenderá que, nestas circunstâncias, os senhorios – uns, por não quererem aplicar dinheiro sem perspectiva de retorno; outros, porque tendo nas rendas a sua principal fonte de rendimento, não lhes sobrava dinheiro para mais; alguns, na secreta esperança de que a ruína do imóvel pusesse finalmente termo a um prejuízo financeiro que não parava de crescer – nada investissem na conservação dos seus prédios?

O que se sabe de ciência certa é que a instrumentalização dos arrendamentos conduz invariavelmente:

(i) à degradação dos prédios arrendados, mesmo daqueles que sejam propriedade do Estado; e

(ii) a dificuldades acrescidas para capitalizar os fundos de pensões.

Tudo o mais tem outras e mais fortes causas, que o congelamento das rendas ocasionalmente reforça. Seria bom, por isso, que o legislador visse claramente quais as consequências directas do congelamento das rendas, para não repetir erros passados. Podemos estar confiantes?

Não tanto – até porque ele, legislador, dá mostras de presumir que os senhorios são todos ricos (veremos como se comportará a Administração Pública relativamente aos prédios do Estado…), e que, por serem ricos, vão ter de pagar todas as crises que, entretanto, ocorrerem. Dito de outro modo, o propósito último de todo este esforço legislativo parece ser forçar os senhorios a procederem a obras de reabilitação, com a promessa de um regime para o arrendamento urbano liberal na aparência, mas, na realidade, ainda muito constrangido pela burocracia estatal.

Restam os aspectos negativos que referi a propósito da forma que este esforço legislativo tomou. O mesmo conceito com diferentes designações, ou definido aqui de uma maneira, ali de outra – a denotar que se está perante um trabalho a várias mãos, mas insuficientemente coordenado. Regras para a contagem de prazos, imprecisas. Para cada situação, seu prazo e seu procedimento, sem que se perceba bem a razão de tanto preciosismo que só confunde. Descrição atabalhoada de fórmulas (e o que há a regular faz apelo a tantas fórmulas!), sendo evidentes as dificuldades que o legislador experimenta quando tem de lidar com os rudimentos da álgebra. Fracos conhecimentos sobre finança e mercados financeiros, de que o mercado imobiliário é, apenas, um segmento com características muito próprias. Remissões erradas. Disposições repetidas no mesmo diploma, ou em diferentes diplomas – por vezes, com subtis diferenças. Frases rebuscadas, onde nem sempre é fácil identificar o respectivo sujeito. Ausência de fio lógico, com os artigos a sucederem-se como num bloco de apontamentos, conforme vêm à ideia. E, acima de tudo, falta de clareza – como se o legislador pretendesse que, de ora em diante, o mais modesto acto no mercado imobiliário passasse, inevitavelmente, por advogados e tribunais. (Naturalmente, facultarei via Net, aos leitores interessados, exemplos do que aqui estou a afirmar).

A análise que me proponho fazer percorrerá sucessivamente:

(i) o modelo definitivo - designado Regime dos Novos Arrendamentos Urbanos (RNAU);

(ii) o modelo de transição dos dois actuais regimes (aquele que prevaleceu até princípios dos anos 90 e o Regime do Arrendamento Urbano, desde então) para o RNAU;

(iii) o papel reservado ao Instituto Nacional de Habitação (INH).

Tudo temas para próximos artigos.


A. Palhinha Machado

Outubro de 2004

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